Há anos e anos que, no mesmo sentido da Saúde e da Educação, a Cultura pertence ao circuito dos parentes pobres, na perspectiva dos poderes políticos decisórios. É uma espécie de artifício que vai sendo alimentado quando interessa no sentido de qualquer aproveitamento político e mais ou menos suportado, com um encolher de ombros, muito ainda graças à nossa História recente e não tão nova assim.

É verdade que não é fácil "aturar" gente que, pela criatividade, pela rebeldia, pelas contra-correntes que muitas vezes abraça, coloca sempre dificuldades aos que preferem falsas unanimidades e enfiar os muitos lixos convenientemente debaixo do tapete. Enfim, artificialmente, parece sempre que...sendo que todos nós sabemos que se fica sempre pelas aparências.

A diluição de conceitos, a miscelânea pouco saudável (e exasperante) com que se confunde o conceito de Cultura nas suas múltiplas vertentes com meia dúzia de actos, que apenas resultam em demagogia e em mediocridade; o mais absoluto desprezo por um dos baluartes essenciais da unidade de uma comunidade geo-política, que quanto mais diversa é, mais rica se pode tornar; o esquecimento absoluto a que é votada, desde o organismo oficial que concebe as suas linhas mestras, que com urgência deviam estar enquadradas num plano mais geral e associado a tarefas concretas que nos abrissem as portas de saída do nosso profundo atraso civilizacional, às várias associações existentes, e à pouca importância que é dada a quem devia ser valorizado, apoiado, respeitado; a inexistência de fronteiras entre o que é resultado de um processo sério de trabalho criativo - porque é de trabalho que falamos! - literário, pictórico, musical, teatral, de dança, seja qual for e o que por aí vai de chamadas manifestações culturais, quase todas resultado de uma profunda diletância, de formas inventadas para ascenderem socialmente e que resultam numa massificação assustadora de mediocridade e incultura; são alguns dos muitos sinais perturbadores de uma grande confusão e de uma clara falta de condições para pôr em prática o que sabemos ser a vontade política das estruturas competentes. Exemplo do que foi escrito: o final de um espectáculo de grande qualidade artística, bem organizado, de muita dignidade, que deixa qualquer angolano(a) consciente arrepiado com o que podíamos fazer em todos os campos com relativa facilidade (estamos a falar do Show do Mês e da Orquestra Kapossoka, saudando os organizadores por isso...) coincidiu com a recepção de um email onde nos era apresentada publicidade de um casting, imaginem os nossos leitores, um casting para a escolha de candidatas e candidatos que participem na "1ª edição do concurso Miss e Mister Literatura Angola"... !!! Inqualificável? Absurdo? Inacreditável? Não. Entre nós, tudo é possível...

Como escrevemos atrás, há fronteiras que têm de ser urgentemente delimitadas. Há urgência em pôr um travão em desmandos como o atrás contado. Angola não é esta gente nem pertence a estes espécimes, cuja actividade cerebral não é certamente igual à da esmagadora maioria da nossa população.

Imaginemos o que serão estes e estas putativos e putativas escritores e escritoras, que se apressam para participar num casting de misters e misses. Não estamos a falar de sub-culturas, no sentido que lhes é dado para se "ser diferente em conjunto". (Haenfler).

Estamos a falar de gente que, na definição de António Guerreiro, vive embebedada "no triunfo de uma lumpen-burguesia que tanto no plano intelectual como moral perdeu o sentido da decência e do respeito".

É um bom momento para juntar forças e tentar acabar com "isto".

Se vamos a tempo ou não, já é outra conversa.