Foi o quotidiano de muitos de nós nascidos e criados no meio rural. Realmente, se dissesse que naquela idade, ficava feliz acordar às 5 horas da manhã, ou pastar bois e ovelhas, não estaria a falar a verdade! Em vez de cuidar dos animais ou cumprir uma tarefa dimanada do pai, ou da mãe, como criança que era, gostaria, também, de andar na brincadeira, como muitas outras crianças da minha idade. Por isso, em alguns momentos discordei mesmo, com algumas decisões que os meus pais tomaram, que, entretanto, fizeram-me o homem que sou hoje.

Recordo-me de uma recomendação que o meu pai deu à minha Tia, sua irmã mais nova, com quem fui viver aos 10 aos de idade, porque o meu pai acreditava que a escola da cidade ou vila, Cunje (ex Silva Porto Gare) era melhor que a da aldeia. A recomendação foi que o Candundo (EU), terá de ter tempo para brincar, para trabalhar e para estudar. A minha Tia foi fiel no cumprimento da recomendação do Irmão mais velho, para com o sobrinho (EU), mas totalmente laxista para com os seus próprios filhos. Em muitas ocasiões, me senti indignado, cumpri com resignação as tarefas que me foram atribuídas, dado que os meus primos ficavam na brincadeira. Triste ver o estado daquelas crianças hoje, não se conseguem ajudar a si próprios. A cultura de trabalho é inculcada em tenra idade. A criança tem de saber valorizar os ensinamentos que lhe são passados pelos adultos com quem cresce.

Esta reflexão vem a propósito da situação que caracteriza a sociedade angolana. Andando pelas ruas das vilas e cidades angolanas, vemos as crianças em idade escolar a pulular pelas ruas, no período escolar, a pedir esmolas, a vender, a pedir para carregar um saco, daí receber algo em troca. Efectivamente, é um ambiente de extrema pobreza, afectando grande porção de crianças angolanas. Vemos crianças tomando conta de outras crianças. Qual é a educação que essas crianças angolanas estão a receber? A educação, as conformações da personalidade do ser humano, segundo estudos do comportamento humano, ocorrem entre os 6 a 12 anos. O desenvolvimento psicomotor dá-se neste intervalo de crescimento da criança. Se a nutrição da criança não foi feita de alimentos ricos em proteínas e vitaminas e em ambiente salutar, como se espera que a mesma venha ter capacidade de absorver ensinamentos e saberes? Diz-se sempre que o berço conforma a criança, o homem ou a mulher do futuro. Como queremos que a sociedade venha criar condições de um bem-estar para todos, se não estamos a proporcionar as condições necessárias, para que todas as crianças angolanas cresçam em ambiente que proporcione a exploração do seu potencial?
A transformação do meio circundante só é possível com trabalho árduo e estruturado, o mesmo é dizer, que a influência do meio para o nosso benefício deve ser realizada na base de saberes, muitos deles já desenvolvidos e provados. Esses saberes devem ser ensinados e absorvidos no processo educativo. Tem de haver um acumulado de saberes, fazer (know-how), para que haja o aproveitamento dos recursos naturais que temos o privilégio de ter, como os recursos naturais no subsolo, as condições edafoclimáticas, possam beneficiar todos os angolanos.

A cultura de trabalho é quem cria as condições para que se criem as condições para inculcar ou enraizamento da cultura de desenvolvimento. Não haverá negócios sustentáveis sem homens bem-educados e instruídos. Espanta-se porque é que as fazendas e quintas que no outrora foram altamente produtivas, criaram riqueza e hoje não passam de lugares de lazer. Vemos muitos dos nossos concidadãos que tiveram o privilégio de adquirem património outrora sob tutela do Estado. Transformaram fábricas em armazéns e/ou as alugaram aos estrangeiros, vivem da renda. Aliás, o exemplo mais paradigmático foi o das fazendas da população branca do Zimbabwe, entregues aos nacionalistas, a história é bem conhecida.

Conhecemos a história de empresários bem-sucedidos, mas que o império que criaram desmoronou logo após a sua morte, pese o número de filhos que geraram, por quê? Porque não forjaram nos filhos a cultura do trabalho. Trabalhei para uma empresa familiar no Canadá, cuja gestão estava sob o comando de um dos filhos, que desde muito cedo trabalhou com o pai, tendo começado na sala de expediente (mail room), tendo, bem-dizer, passado por todas as áreas do negócio. O homem tinha profundo domínio do negócio em que estava envolvido. O sucesso da empresa dura até os dias correntes, a cultura de trabalho inculcada pelo progenitor preserva o legado da família, hoje é uma empresa que vende bilhões de dólares, emprega milhares de pessoas e está cotada na bolsa de valores. Hoje a gestão é profissional, a família está circunscrita ao conselho de administração como Administradores não Executivos, pois infelizmente, na segunda geração não há sucessores.

Referi numa reflexão anterior que Angola enfrenta no médio e longo prazo dois desafios: o crescimento demográfico descontrolado que se assiste; e a ocupação desordenada de terras. O controlo da natalidade não se vai conseguir se não se instruir a mulher. A mulher instruída tem a noção das consequências de ter muitos filhos na sua carreira profissional, como também tem condições de educar os filhos. As primeiras vogais e consoantes aprendi-as com a minha mãe, que foi professora, e graduada da Escola Means do Dondi. Não é um simples adágio, quando se diz que, «educa a mulher, terás educado a nação».

Recentemente, vindo do Huambo, numa das localidades entre Monte Belo e Bocoio, onde se vende ananás, falei com uma moça que aparentava ter 16 anos, estava com dois bebés, um no colo, outro nas costas. Fiz tudo para lhe comprar o ananás, pois havia uma azáfama, uma luta das vendedoras, decidi comprar à moça que estava com as duas crianças, assim ao aproximar-me, poderia satisfazer a minha curiosidade. Perguntei-lhe que idade tinha, a resposta foi "16 anos, vou fazer 17 anos em Outubro"! Oh, esses bebés são seus? "Sim, tenho esses dois e já perdi uma, ou seja, aos 16 anos já tinha 3 partos. A ocupação desordenada de terras é outro desafio que se vai agudizando com avolumar de pessoas sem instrução. A casa construída por um instruído obedece determinados padrões, mesmo em ambiente não urbanizado.

Recordo-me que a casa dos meus pais, apesar de ser numa aldeia, era coberta de telhas, cimentada, tinha retrete. Não é o caso dos casebres que circundam as actuais vilas e cidades, porque albergam pessoas sem capacidade para viver nas cidades, por outras palavras sem instrução.

Na semana passada, aproveitei o feriado prolongado do Dia da Paz para passar alguns dias no Lubango. Em companhia da minha esposa, fomos ao mercado municipal da cidade, uma criança que ajudava a esposa trazer as compras para o carro, ainda lá estava no mercado fazendo a mesma coisa, mas agora já era homem, quer a tonalidade da voz, quer a face já coberta de pelos, indicava que era homem, dava indicação que fazia uso de bebidas alcoólicas. Comentei com a esposa que este é uma das ameaças que o país enfrenta, porque não se pode contar com aquele cidadão, nem mesmo para se ajudar a si mesmo, porque não lhe foi inculcada a cultura de trabalho na infância. No dia seguinte, fui visitar o Perímetro Irrigado da Humpata e Barragem das Neves, onde um amigo tem uma quinta, com um lindo pomar. Os terrenos que no passado foram usados para produzir trigo, batata, maçã, peras, morangose outros produtos, está a ser invadido por casebres. A estrada para se chegar a quinta que visitei há 4 anos, faz-se como se estivéssemos numa gincana. Não perguntem porque é que a diversificação económica não se efectiva na velocidade que muito se deseja, é, fundamentalmente, porque as nossas crianças, os homens de amanhã, não estão a ser inculcada a cultura de trabalho, que degenera em cultura de desenvolvimento, o ingrediente para o crescimento económico, sem qual não haverá classe média, tão pouco mercado para produtos intensivos em tecnologia.

*Economista