Apesar dos esforços do Governo para minimizar o efeito da prolongada falta de chuva, principalmente nas províncias do Cunene, Huíla, Namibe, segundo o UNICEF, a agência da ONU para a infância, a seca está ainda a empurrar para fora do sistema de ensino cerca de 200 mil crianças que podem, assim, deixar de forma definitiva a escola.
Este problema, o abandono escolar, que tem sido menos alvo de atenções face à crise alimentar, fome e malnutrição agudas, está agora a ser sublinhado pela UNICEF, neste relatório divulgado pelo UNOCHA, de forma a chamar a atenção para o perigo que representa para o futuro do país a saída de tantas crianças da escola.
Ainda segundo o mesmo relatório, à medida que o tempo passa, a extensão de tempo sem chuva, ou chuvas muito abaixo da média, os efeitos nefastos vão-se acumulando de forma cada vez mais severa para as populações locais, com especial incidência nas crianças e nas mulheres.
"A situação deteriorou-se entre Janeiro e Março deste ano, com um substancial aumento do número de pessoas em risco ou já afectadas de forma evidente pela seca e a consequente insegurança alimentar, sendo disso exemplo o Cunene, onde o número de pessoas atingidas passou de 249 mil para mais de 857 mil", aponta o documento.
Face a esta realidade, a ONU antecipa que 2020 vai ser um ano ainda mais difícil que foi 2018 e está a ser 2019 porque a mobilização de recursos está aquém do necessário, a capacidade de resposta não é a suficiente para responder à urgência imediata e, acima de tudo, as previsões meteorológicas para o próximo ano são ainda muito castigadoras para a produção agrícola e para a criação de gado, o que leva a uma previsão alarmante para a situação humanitária nas províncias austrais de Angola.
No que concerne à previsão meteorológica, o documento aleta para que as primeiras chuvas, que serão em quantidade abaixo do normal, só vão ser sentidas em finais de Outubro e as que caírem na região apenas terão consequências na produção alimentar para 2020.
Perante este cenário agravado, o UNICEF recorda ainda que a malnutrição aguda atinge já 9,8 por cento da população e a malnutrição severa abrange 5,6 por cento dos habitantes das três províncias, sendo que no Cunene ena Huíla, os efeitos nefastos da seca estão a ser já sentido de forma evidente por 80 e 70 por cento da população respectivamente, prevendo-se que este cenário venha a agravar-se nos próximos seis meses por causa da anormal estação das chuvas que se espera, sendo a diminuição de refeições e a qualidade destas um elemento fulcral na saúde das comunidades, especialmente entre as crianças.
A acompanhar esta realidade, somam-se elementos que fazem crescer os receios, como sublinha a ONU neste relatório ao recordar que os bens alimentares básicos, como a fuba de milho, o feijão, o açúcar e o óleo aumentaram em média 25%, sendo essa uma das causas de um considerável aumento verificado nos índices de violências doméstica e abusos sobre as mulheres e as crianças que são obrigadas a deixar as escolas para, por exemplo, partirem com o gado para locais distantes em busca de pastagens.
E isso levou a que em alguns locais tenham sido registadas taxas de abandono escolar superiores a 50%, sendo que em locais como Curoca (Huíla), esse abandono escolar é de 100% devido ao fecho das 13 escolas existentes, estando nos radares do UNICEF o risco de 193 mil crianças estarem à beira de sair da escola na província do Cunene à medida que se agravam as consequências da seca.
Rasto das alterações climáticas "queima" a África Austral
O aviso já tinha sido feito em meados de 2018 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Departamento de Alimentação, Agricultura e Recursos Naturais da SADC: A África Austral iria atravessar, de novo, dificuldades com a falta de chuva. O sul de Angola estava no mapa das preocupações.
As províncias do sul de Angola vivem há anos em permanente escassez de chuva, mas, nos últimos meses, o problema ganhou dimensão regional e uma vasta área da África Austral entrou na zona de risco severo no que diz respeito à segurança alimentar das populações em vastas áreas de Angola, Zâmbia, Zimbabué, norte da Namíbia, sul de Moçambique e ainda no Botsuana, Madagáscar e na África do Sul.
Estes países, onde se juntam ainda o Lesoto e a Tanzânia, receberam, em média, nas regiões afectadas, menos de 75 por cento do que é normal em matéria de pluviosidade.
A falta de chuva no sul de Angola, tal como quase em todos os países da África Austral, resulta do impacto de fenómenos meteorológicos bem conhecidos, como El Niño e La Niña, cujas causas são igualmente bem conhecidas: as alterações climáticas provocadas pela emissão de gases poluentes, na maior parte pela queima de combustíveis fósseis (hidrocarbonetos).
Resposta no sul de Angola
Para analisar o problema e definir um plano de resposta, o Presidente da República, João Lourenço, esteve nas regiões afectadas no sul de Angola e uma missão governamental liderada pelo ministro da Administração do Território e Reforma do Estado, Adão de Almeida, esteve também no local, logo no início do ano.
A abertura de pontos de água, poços artificiais, a reparação de equipamentos de extracção de água, e a criação de postos médicos nas áreas afectadas mais deslocadas, são algumas das medidas criadas nos últimos anos para combater a falta de chuvas e as suas consequências.
Mas, já este ano, a atenção do Presidente da República para o problema levou à aprovação, por despacho, de um pacote financeiro de 200 milhões de dólares para resolver problemas estruturantes que combatam os "efeitos destrutivos" da seca, incluindo a construção de duas barragens no Cunene.
No mesmo despacho foi ordenado, "de imediato, os procedimentos de contratação, por concurso público", dos serviços para a edificação de "um sistema de transferência de água do rio Cunene que partirá da localidade de Cafu até Shana, nas áreas de Cuamato e Namacunde, destinando para a obra o valor em kwanzas no equivalente a 80 milhões de dólares".
Um segundo projecto diz respeito à construção de uma barragem na localidade de Calucuve e do seu canal adutor associado, no valor de 60 milhões de dólares, no seu correspondente em moeda nacional.
São ainda destinados 60 milhões de dólares para a construção de uma outra barragem e o respectivo canal adutor, na localidade de Ndue.
O objectivo prioritário destas represas é o armazenamento de água para os animais e para as pessoas mas podem ser ainda fontes abastecedoras de água para irrigação de campos agrícolas.
Aviso estava dado
O fenómeno meteorológico que ajudou a que a África Austral, nos últimos anos, sofresse uma das mais severas secas do último século, com o sul de Angola claramente no mapa das zonas afectadas, já estava anunciado desde meados de 2018, pela Organização Meteorológica Mundial (OMM).
A OMM, agência da ONU para as questões meteorológicas, criada em 1950 e que reúne alguns dos mais respeitados meteorologistas dos 191 países que a compõem, analisou os dados actuais do clima planetário e concluiu existir uma probabilidade de 70 por cento para que as consequências do El Niño se voltem a fazer sentir a partir de finais de 2018 e nos primeiros meses de 2019.
O El Niño é resultado do aquecimento das águas do Oceano Pacífico que, por sua vez, geram correntes quentes que se dirigem para vários pontos do globo, alterando a direcção dos ventos e gerando, na sua passagem, fenómenos localizados de intensas secas, como é, usualmente, o caso da África Austral, mas também de chuvas intensas, com cheias e tempestades destruidoras.
Em alguns países do sul do continente africano, este fenómeno meteorológico produziu uma das mais dramáticas secas em mais de um século, como é o caso da África do Sul, com a destruição da agricultura local, a falta de água em cidades como Cape Town, mas também nos vizinhos Namíbia, Botsuana, Moçambique, Zimbabue, que vive actualmente uma das piores situações em toda a região austral do continente, e no sul de Angola, obrigando os governos respectivos a criar programas de ajuda extraordinários ou a declarar o estado de emergência.
Recorde-se que entre 2015 e 2016 o mundo assistiu a uma das mais intensas e impactantes "viagens" do El Niño, produzindo catástrofes em série, sejam secas no continente africano, sejam tempestades em algumas regiões da Ásia e das Américas.
Segundo referia Petteri Taalas, secretário-geral da OMM, em Setembro do ano passado, este regresso do El Niño não deverá ser de intensidade semelhante ao que ocorreu há três anos, mas "ainda assim irá provocar um impacto considerável".
Este responsável adiantou, citado pelas agências, que as alterações climáticas como um todo estão a provocar alterações ao comportamento do El Niño, mas também no fenómeno "primo" denominado La Niña, cujas dinâmicas são agora mais imprevisíveis e, nesse seguimento, também os seus resultados e impactos nas vidas das pessoas.
O La Niña opõe-se ao El Niño pela forma como evolui, resultando, não do aumento mas sim da diminuição da temperatura das águas do Pacífico, provocando, todavia, alterações em todo o mundo igualmente graves, nomeadamente nos padrões da pluviosidade e na temperatura de vastas áreas do planeta e que, segundo a OMM já está a suceder este ano.
Um dos riscos das alterações climáticas continuarem sem travão, por causa da poluição, nomeadamente dos gases com efeito de estufa e da queima de hidrocarbonetos (petróleo e gás), é que tanto o La Niña como El Niño deixem de ser fenómenos sazonais para emergirem como situações permanentes, com consequências catastróficas para a humanidade.
SADC lança alertou e pediu decisões rápidas e eficazes
Face a estes riscos, recorde-se, e no que mais importa especificamente para Angola, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, através do seu Departamento de Alimentação, Agricultura e Recursos Naturais, lançou, também em meados do ano passado, um alerta onde pedia aos países membros para providenciarem no sentido de criar stocks alimentares para ocorrer a emergências criadas pela estiagem na estão das chuvas que se aproxima, e por causa dos esperados efeitos na produção agrícola.
Domingos Gove, o moçambicano que dirige este departamento da SADC, (FANR, na sigla em inglês) desde Abril de 2018, tinha mesmo advertido, numa conferência de imprensa em Windoek, capital da Namíbia, em Agosto desse ano, que a próxima estação das chuvas (a que estamos a viver actualmente) deverá ser, mais uma vez, escassa para as necessidades agrícolas.
A África Austral vive há vários anos uma situação de prolongada seca, com picos de seca extrema em vários países, onde, por exemplo, na Namíbia ou na África do Sul, levou os respectivos governos a tomarem medidas extremas para controlar os efeitos nefastos da falta de chuva, declarando situações de calamidade e impondo regras restritivas ao consumo de água.
Por isso, Domingos Gove, em Agosto do ano passado, apelava aos agricultores da África Austral para que procurassem encontrar forma de manter em stock parte das colheitas da última campanha agrícola, não vendendo a sua produção, como forma de fazer frente às dificuldades que se avizinham, perspectivadas pelas análises dos especialistas à evolução do La Niña e do El Niño