Os 55 Chefes de Estado e de Governo que deverão estar este fim-de-semana de 18 e 19 de Fevereiro em Adis Abeba sabem que vão ter, este ano um pouco mais escaldante que no histórico destes encontros, um "continente" de problemas para resolver, desde logo pelas quase três dezenas de eleições que vão ter lugar em 2023, sendo que, nalguns casos, são potencialmente processos geradores de violência, porque foi sempre assim, como é o caso das Presidenciais da República Democrática do Congo (RDC), no mês de Dezembro.
No ano que corre, entre legislativas, regionais, presidenciais e plesbicitarias, o continente africano vai às urnas por 31 vezes, incluindo alguns casos de extrema relevância, como as presidenciais no Sudão, em Julho, em Outubro, na Libéria ou, em Dezembro, na República Democrática do Congo, Chade, Gabão, Líbia, Sudão do Sul, Zimbabué e Madagáscar...
Bem dentro deste cenário surge ainda o referendo de Março, no Mali, que visa definir a nova Constituição, num contexto em que é uma junta militar que governa o país após uma sucessão de golpes de Estado, e, logo no início de 2024, em Fevereiro, as presidenciais malianas.
Entre as mais de cinco dezenas de Presidentes e chefes de Governo que vão estar em Adis Abeba, João Lourenço é um deles e na bagagem levou com ele a responsabilidade de dar a cara pelos esforços regionais em curso para apaziguar o frenesim rebelde no leste da RDC ou a situação de instabilidade trágica na República Centro-Africana, carregando nos ombros o posto de "Campeão africano da paz e da reconciliação" que lhe foi atribuído pela UA pelo seu papel activo nesse papel, especialmente nos Grandes Lagos.
E vai estar em destaque quando em cima da mesa de trabalho dos líderes africanos estiver a questão das eleições na RDC e, sem dúvida, adjacente a esse tópico, a instabilidade no leste do país, junto às fronteiras com o Ruanda e o Uganda, por causa da actividade sangrenta de dezenas de guerrilhas (ver links em baixo nesta página), com destaque para o M23, que está no centro de uma tempestade que pode levar a RDC e o Ruanda a uma guerra aberta de proporções catastróficas para todo o continente.
Alias, esta questão, eleições e instabilidade no leste da RDC, é um dos oito pontos críticos que o International Crises Group (ICG), uma ONG criada em 1995 para procurar evitar conflitos armados, coloca em destaque naquilo que entende que será a agenda principal da 36ª Cimeira da União Africana que este fim-de-semana tem lugar na capital etíope, e que abrange de uma forma directa ou indirecta todo o continente.
Além da questão congolesa, o ICG aponta como decisivo para catapultar a UA para o trilho de maior eficácia no cumprimento da sua missão o 1) - Fortalecimento da sua capacidade institucional (reformas institucionais estão na agenda); 2) - Realinhar a direcção da diplomacia UA na República Centro-Africana; 3) - vigiar a transição política no Chade; 4) - Não deixar morrer o acordo de paz na Etiópia, entre o Governo e os rebeldes de Tigray; 5) - Diluir a tensão da Barragem do Nilo entre Sudão, Egipto e Etiópia; 6) - Ajudar a Líbia a sair da interminável crise políica quase sem saída em que se encontra; e, 7) - Apoiar as negociações no Sudão para o sucesso da transição política.
Se este for o "menu" da 36ª Cimeira da UA, embora enquanto temas de discussão sê-lo-ão garantidamente, é mesmo um "continente" de problemas para resolver que espera os mais de 50 líderes continentais que já estão ou estão a caminho de Adis Abeba, aos quais não deixarão de ser colados os problemas de natureza constitucional em países como o Mali ou o Burquina Faso (ver links em baixo nesta página).
A guerra ao longe, os efeitos no quintal...
Mas há outro tema que não ficará de fora do "prato", que é o período diplomaticamente frenético que o mundo vive, especialmente desde o início da guerra na Ucrânia, após a invasão da Rússia, vai agora fazer um ano, a 24 de Fevereiro, e onde o continente africano voltou a ser a menina dos olhos das grandes potências globais, como o demonstra os sucessivos périplos africanos dos responsáveis pelas diplomacias dos EUA, da Rússia, da China, de França, Reino Unido, Alemanha... ou as visitas em preparação dos Presidentes francês, Emmanel Macron, norte-americano, Joe Biden, da recente visita do Rei de Espanha a Angola etc.
Em pano de fundo para estes "grand tour" dos "donos do mundo" por África está a luta de titãs entre os Estados Unidos e os seus aliados ocidentais, e a Federação Russa e a China, com intermitente mas importante apoio de países como a Índia ou a África do Sul, ou mesmo do Brasil, na criação de condições para manter ou alterar a actual "ordem mundial baseada em regras", criada após a II Guerra Mundial pelos EUA com os seus interesses garantidos, ou a evolução para uma "ordem mundial alicerçada na cooperação entre iguais" como defende Moscovo e Pequim...
Os lideres africanos não desconhecem, seguramente, que por detrás das sucessivas visitas das figuras de primeira linha das diplomacias mundiais, de Antony Blinken (EUA) a Sergei Lavrov (Rússia) ou Qin Gang (China), está a procura de atrair para as suas causas não só as diplomacias africanas no contacto dentro da geografia continental para alargar o universo de aliados, mas também para garantir os votos, cujo valor é mais simbólico que outra coisa, na ONU, ou ainda, e, provavelmente, o mais importante, para garantir parceiros fiáveis no comércio global, desde logo dos minérios estratégicos mais relevantes e que abundam em África e escasseiam no mundo.
Com os Estados-membros a mostrarem opções divergentes, como, por exemplo, a África do Sul ou a Argélia, a alinharem com Moscovo no essencial, ou a Nigéria e Marrocos, mais próximos dos interesses dos EUA, sendo que em muitos casos começam a surgir brechas em muralhas historicamente sólidas, como as que ligam Angola à Rússia desde a luta pela independência, com Luanda a virar acentuadamente a agulha estratégica para Washington, embora sem hostilizar Moscovo.
A novidade...
Criada a 26 de Maio de 2001, a União Africana, que surgiu com a missão bem clara de acabar com a imagem de inépcia da antiga OUA, claramente colada à anarquia da segunda metade do século XX, marcado por uma multitude de alterações à ordem constitucional em dezenas de países, seja por via de golpes militares disruptivos - não acabaram e estão de novo a emergir em vários pontos do continente -, seja por ditaduras que se perpetuavam na violência, seja pela manipulação escandalosa de resultados eleitorais - outro dos problemas que persistem -, nunca teve um Presidente proveniente de algum dos seus estados-membros insulares.
Mas isso está prestes a acabar, porque já se sabe que o próximo Presidente da União Africana é o Presidente das Comores, o país-arquipélago do Índico, situado no Canal de Moçambique, com três ilhas principais e pouco mais de 800 mil habitantes, cuja capital, Moroni, pouco excede os 100 mil e é independente da França desde 1975, processo concluído após referendo, sendo essencialmente conhecido pelas suas praias e montanhas vulcânicas e pela miscelânea de origens da sua população, desde africa, a portugueses, franceses árabes ou indianos...
Alias, alguns analistas citados pelos media das ilhas online, admitem que a chegada do Presidente Azali Assoumani a Presidente da União Africana, substituindo no cargo o senegalês Macky Sall, é o maior feito do arquipélago em décadas e uma oportunidade única para colocar as Comores no mapa político de África e do mundo, destacando-se, eventualmente, do seu passado turbulento de golpes e instabilidade, e de entre as muito mais conhecidas, calmas e desenvolvidas Seicheles e Maurícias.
O chão vai tremer debaixo dos pés de Assoumani
Só que Azali Assoumani vai ter pouco tempo para experienciar o momento que é, ainda, ser o primeiro Presidente de um arquipélago a liderar a UA, porque 2023 é um ano excepcionalmente repleto de desafios, desde logo as dezenas de eleições que atravessam 30 países do continente, mas com situação fortemente marcadas a vermelho no mapa que, seguramente, terá no seu gabinete na sede da organização pan-africana em Adis Abeba.
Uma dessas eleições fundamentais acontece na Nigéria e serão já a 25 deste mês, com o país envolto numa tremenda crise económica e social.
Com 200 milhões de pessoas, a Nigéria é o mais populoso país em África, mas é também dos mais instáveis, com grupos de jihadistas e bandidos a atormentar quase todo o território, o mais rico em PIB e ainda um dos que enfrenta a crise económica mais séria por estes dias.
Quadro geral que faz com que as eleições presidências marcadas para 25 deste mês sejam mais que um marco fundamental para a estabilidade interna da NIgéria, são um teste à democracia em todo o continente, que só em 2023 vai contar com corridas eleitorais renhidas num terço dos países.
Ao longo de 2023, entre legislativas, regionais, presidenciais e plesbicitarias, o continente africano vai às urnas por 31 vezes, incluindo alguns casos de extrema relevância, como as presidenciais no Sudão, em Julho, em Outubro, na Libéria ou, em Dezembro, na República Democrática do Congo, Chade, Gabão, Líbia, Sudão do Sul, Zimbabué e Madagáscar...
Bem dentro deste contexto surge ainda o referendo de Março, no Mali, que visa definir a nova Constituição, num contexto em que é uma junta militar que governa o país após uma sucessão de golpes de Estado, e, logo no início de 2024, em Fevereiro, as presidenciais malianas.
Com este contexto continental faiscante e uma realidade interna de crise séria, que ameaça mesmo a sua estabilidade política e social, a Nigéria vai enfrentar umas eleições presidenciais desafiadoras, que são decisivas para a consolidação da democracia em África considerando que serão vistas como um exemplo para o bem e para o mal.
Se a Nigéria não der o exemplo, o que pode bem acontecer, considerando que no noroeste, domina o terror dos jihadistas do Boko Haram, no sudoeste, o país treme sob o fogo das dezenas de grupos de bandidos que varrem localidades inteiras, no Delta do Níger, sobressaem as guerrilhas económicas, como os Vingadores, que exploram as fraquezas das perolíferas e a refinação ilegal de crude roubado, e milhões de jovens lutam por um emprego, com o custo de vida a subir diariamente, tumultos nas ruas em defesa de direitos políticos e sociais, então o mal social e político tem mais potencial para alastrar ao resto do continente.
E isso não parece muito difícil de suceder, porque em vários países vivem-se dramas contínuos há décadas, como na RDC, com as guerrilhas no leste, golpes sucessivos como no Mali e no Burquina Faso, ou na Guiné-Conacri e na Guiné-Bissau, guerras civis brutais como na Somália, na República Centro-Africana... rebeliões, como o norte de Moçambique, tentativas de golpes, como recentemente em São Tomé, Lesoto, Níger...
O facto de o Presidente Muhammadu Buhari não poder ser candidato por ter atingido o limite legal de mandatos, é uma abertura para que o processo eleitoral decorra sem grandes perturbações até que os resultados sejam divulgados, mas os analistas que estão a ser citados pela imprensa internacional, admitem que nada está garantido.
Um dos especialistas em democracia africana, ouvidos pelo Guardian, Nic Cheeseman, professor na Universidade de Birmingham, entende que a Nigéria é uma espécie de charneira no continente, e se estas eleições correrem bem e forem vistas e apercebidas como democráticas e justas, esse exemplo será tendencialmente repetido, mas o contrário é igualmente verdade.
O mesmo pensa Idayat Hassan, director do Centro para a Democracia, em Abuja, que nota que se trata de um momento para ser visto com optimismo e também como um teste, o que "é um sinal de progresso, porque deixa em evidência os 24 anos seguidos de democracia com os presidentes a aceitarem os termos constitucionais do limite de mandatos.
Um dos riscos comummente notado pelos analistas é que a crise económica severa dos últimos anos, com a Covid-19 e com a guerra na Ucrânia como detonadores principais, a Nigéria vive momentos limite para a sua extensa população, que enfrenta dificuldades severas e existe o risco destes momentos serem rastilhos para perturbações mais sérias, social e politicamente falando.
E o mesmo acontece na generalidade dos países africanos, onde esta sucessão vertiginosa de eleições de vários patamares pode ser uma plataforma potenciadora de instabilidade social, política e militar.
Não se pode ainda esquecer neste contexto o potencial perturbador da influência que está a tentar ser exercida pelas potências ocidentais, cujos seus representantes, de ministros dos Negócios Estrangeiros a Chefes de Estado e de Governo, andam em sucessivos périplos pelas mais relevantes capitais africanas, onde Luanda tem estado em destaque.