Corpos espalhados ao longo de uma estrada da cidade de Bucha, entre viaturas calcinadas, civis e militares, grupos de cadáveres juntos em locais expostos, alguns com as mãos atadas atrás das costas, outros com braçadeiras brancas, comummente usadas para identificar as tropas russas ou civis pró-russos, eis o cenário que o Governo ucraniano filmou e divulgou em todo o mundo para mostrar as atrocidades alegadamente cometidas pelas forças russas durante os quase 40 dias em que ocuparam a localidade e no momento em que dela saíram, a 30 de Março.
Para fortalecer a convicção global de que se tratou de crimes de guerra e contra a humanidade, o próprio Presidente Volodymyr Zelensky esteve em Bucha, na segunda-feira, acompanhado de um grupo alargado de jornalistas, que filmaram e descreveram as valas comuns contendo centenas de corpos, as estradas cobertas de cadáveres e viaturas de combate calcinadas.
E o Presidente ucraniano vai estar hoje, através de videoconferência, na reunião do Conselho de Segurança da ONU, agendada pela Rússia, a convite da presidência britânica, para falar deste episódio ocorrido em Bucha, no mesmo dia em que a Procuradora do seu país veio acusar a Rússia de 4.000 crimes de guerra nos 40 dias de conflito, preparando o caminho para abrir uma nova frente de batalha na justiça internacional.
Mas já o ocidente tinha reagido com a força de um elástico puxado e largado de repente, com a promessa dos europeus e dos norte-americanos de reforçarem as sanções contra a Rússia, de promoverem investigações independentes para provar a culpabilidade dos russos e processos nos tribunais internacionais para julgar e condenar o Presidente russo, Vladimir Putin, e os seus ministros e comandantes militares pelas atrocidades vistas na pequena cidade de Bucha que pode ser a maior dor de cabeça de Moscovo em 40 dias de guerra e mudar em definitivo o rumo desta que já é a pior guerra na Europa desde a que ocorreu nos Balcãs, na década de 1990, embora haja quem diga que é mesmo a pior desde o fim da II Guerra Mundial, em 1945.
É uma montagem para culpar a Rússia de crimes que não cometeu, diz o Kremlin
O Governo russo foi célere a reagir e a negar toda e qualquer responsabilidade sobre os crimes cometidos em Bucha, primeiro através do porta-voz do Ministério da Defesa, que garantiu que não foram os militares russos que assassinaram aquelas pessoas vistas no meio de uma estrada em Bucha, descrevendo as semanas de ocupação pelas suas forças como tranquilas e com os militares russos a conviverem com a população local a ponto de terem mesmo estabelecido relações comerciais de ocasião, trocando comidas por equipamentos...
Depois, foi o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que aproveitou uma conferência com a Liga Árabe, em Moscovo, para reafirmar que se tratou de um vídeo montado pelos ucranianos, "com o apoio dos seus tutores ocidentais" para atacar a Rússia na sua guerra de comunicação.
Por fim, o representante da Rússia nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia, veio consolidar essa mesma ideia ao garantir ter na sua possse documentos que provam as afirmações russas sobre a montagem daquelas imagens e o vídeo "falso" que atravessou continentes, tendo anunciado para o final do dia desta terça-feira, 05, em Nova Iorque, uma conferência de imprensa onde vai expor a "farsa ucraniana" e mostrar o que "efectivamente aconteceu".
O golpe final russo nesta estratégia ucraniana será dado, pretensamente, segundo a parte russa, no encontro do Conselho de Segurança, onde a Rússia será sujeita à pressão da maioria dos membros, embora possa contar com uma postura menos agressiva da China.
Tal como os meios demcomunicação social ocidentais apostaram as fichas todas na convicção da culpabilidade russa, os media russos apostam tudo na convicção de que se trata efectivamente de uma farsa ucraniana e já começaram a passar algumas peças que, alegadamente, demonstram as fragilidades das imagens dadas como provas pela equipa comunicacional de Zelensky.
Entre elas estão algumas que parecem mostrar um dos corpos na estrada a "mover" um braço aquando da passagem da caravana ucraniana após a saída dos russos, outra onde um dos "cadáveres" surge numa imagem de um retrovisor a "levantar-se" do chão.
Há ainda as imagens do autarca de Bucha que, um dia depois das forças de Moscovo terem deixado a localidade, fez declarações a congratular-se com a libertação da sua terra dos ocupantes sem referir quaisquer dados sobre as atrocidades filmadas horas depois, o que os russos dizem não fazer sentido porque Bucha é uma pequena localidade e esse tipo de situações teriam de ser do conhecimento do autarca Anatoly Fedoruk, que, pelo contrário, "afirmou estar tudo em ordem".
Imagens falsas?
Face a estas alegações dos media e das autoridades russas, pelo menos dois destes momentos captados em vídeo foram já alegadamente desmontados através de técnicas laboratoriais de imagem pela France 24, que disse ter provado que o alegado "morto" a levantar-se do chão filmado através do retrovisor de um dos veículos ucranianos é, na verdade, um efeito de distorção gerado pelo espelho da viatura, enquanto o alegado braço do corpo na estrada que parece mover-se, não é mais, ainda segundo o canal francês, que um objecto com semelhanças com uma braçadeira branca a percorrer o corpo criando outra ilusão de óptica.
Também o The New York Times, com imagens captadas por satélite, veio mostrar que os corpos que as autoridades russas dizem ter sido "plantados" pelos ucranianos após a sua saída de Bucha, já ali estavam há semanas. Mesmo que estas imagens não provem que aquelas pessoas foram mortas por militares russos, pelo menos diluem a solidez da narrativa russa de que não existiam quando deixaram a cidade. A não ser que, como alega Moscovo, também se trate de uma montagem...
Todavia, o embaixador russo na ONU não se referiu explicitamente a estas como as imagens que vai apresentar como prova de que não foram militares russos a perpetrar aquelas atrocidades, que a comunidade internacional não tem dúvidas de que se trata de crimes de guerra e contra a humanidade, embora tanto os EUA como as grandes potências europeias se tenham recusado a alinhar na tese de Kiev, lançada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmitri Kuleba, de que se trata de um genocídio, tese que foi repetida depois por Volodymyr Zelensky.
O representante da Rússia nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia, disse, isso sim, que "nenhum cidadão civil sofreu às mãos das tropas russas" e avançou garantias de que isso mesmo vai ficar "provado na reunião de hoje", deixando no ar um dos argumentos que já tinha sido apontados pelos media russos, nomeadamente a ausência de quaisquer imagens, fotografias ou vídeos, captadas pelos habitantes da cidade que, durante a ocupação russa, nunca deixaram de ter consigo os seus telemóveis e, seguramente, face a este tipo de horrores," não deixariam de os fotografar ou filmar".
Os analistas admitem que, depois, das acusações de genocídio e as declarações do Presidente ucraniano, e deste episódio de Bucha, será quase impossível um encontro entre os Presidentes russo e ucraniano, o que deixa antever que a paz só será conseguida após uma vitória esmagadora de uma das partes ou a constatação de facto de uma situação férrea de impasse militar. A não ser que a reunião de hoje do Conselho de Segurança da ONU venha a revelar dados que surpreendam tudo e todos. Mas tal não é de esperar...
A diferença entre crime contra a humanidade e crime de guerra é que o segundo só ocorre durante um conflito e o primeiro em qualquer circunstância onde deliberadamente forças militares ou milícias massacram cidadãos indefesos sem qualquer objectividade militar, sendo que o genocídio, cujo exemplo mais conhecido em África é o do Ruanda, em 1994, onde a maioria Hutu massacrou mais de 800 indivíduos da minoria Tutsi, é emoldurado pela procura sistemática de exterminar um povo ou uma população claramente definida.
E a guerra prossegue
Entretanto, no terreno, a guerra soma e segue, com as forças ucranianas que retiraram do norte, das imediações de Kiev, a dirigirem-se para leste, onde os analistas, e as autoridades militares russas também o anunciaram, vai ter lugar a frente de batalha decisiva.
Isto, porque Moscovo já determinou que vai concentrar o seu poder de fogo na libertação total das repúblicas do Donbass, a de Donetsk e a de Lugansk, onde, como é afirmado pelos analistas militares, a Ucrânia tem o grosso das suas forças de maior capacidade combativa, desde 2014, quando os nacionalistas anunciaram a sua intenção independentista desta área geográfica do leste ucraniano pró-russo, e ainda próxima da Crimeia, que, após referendo, Moscovo anexou também em 2014.
Perto de 60 mil homens, os melhor preparados e equipados, da Ucrânia, deverão enfrentar as forças russas reagrupadas, que visam uma rápida vitória militar, aproveitando a dificuldade de reabastecimento dos ucranianos, de forma a que as comemorações do 09 de Maio, o dia da libertação e da vitória soviética sobre os nazis de Hitler, em 1945, decorram sem a sombra de uma possível derrota histórica da Rússia na Ucrânia.
Esta vitória-relâmpago é ainda fundamental para que a Rússia possa dar por completa a sua tomada da costa do Mar de Azov, sendo que ainda falta terminar a operação de tomada da cidade estratégica de Mariupol, onde decorrem os piores combates desta guerra que já vai em 40 dias.
Nos países vizinhos, apesar de em muito menor número, continuam a fluir milhares de refugiados para os países vizinhos, como a Polónia e a Hungria...
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.