A partir de Adis Abeba, a capital etíope, onde a União Africana (UA) tem a sua sede continental, o primeiro-ministro Ahmed, Prémio Nobel da Paz 2018, ordenou que a prometida ofensiva militar fosse iniciada, deixando a porta aberta para uma nova tragédia no continente, com o órgão que une os 54 países do continente ali ao lado a assistir impotente ao avanço dos tanques sobre uma cidade com meio milhão de habitantes.
União Africana, ONU, os países vizinhos da Etiópia na já de si massacrada região do Corno de África, apesar do forte empenho no apelo ao diálogo entre as forças rebeldes de Tigray e o Governo federal, não foram capazes de travar o recurso às armas para resolver um diferendo histórico que opõe os independentistas da TPLF e as forças federais.
Apesar de o comandante das forças federais ter dito há dias que se os rebeldes não depusessem as armas, a ofensiva seria sem quartel e sem poupar ninguém, incluindo os civis que não fugissem da cidade, hoje, o primeiro-ministro, nas redes sociais, corrigiu o tiro e veio garantir que serão tidos todos os cuidados para poupar as vidas dos habitantes que não conseguiram fugir ou optaram por ficar, bem como poupar ao máximo as infra-estruturas ubanas.
No Twitter, Ahmed publicou um documento oficial onde explica que o ultimato chegou ao fim e que centenas de rebeldes se renderam mas que o grosso das forças não o fez, estando, por isso, a ter início a ofensiva prometida para repor a lei e a ordem.
Face a isso, pediu aos habitantes de Mekelle que se mantenham longe dos alvos militares, que fiquem em casa e tomem as precauções necessárias para não se exporem ao perigo provocado por "um punhado de criminosos da TPLF" que serão levados à justiça a bem ou a mal.
Sob o título do seu tweet, "A fase final das operações para garantir o cumprimento da lei começaram", Abiy Ahmed deu o passo que pode culminar em mais uma prolongada guerra de atrito em África, visto que os rebeldes da TPLF já vieram deixar claro que nem se vão render nem admitem como verdade que as suas forças estejam a ser fortemente castigadas pelas forças federais de Adis Abeba, que algumas organizações internacionais dizem contar com milhares de soldados da Eritreia.
Debretsion Gebremichael, o chefe da Frente Popular de Tigray, já garaniu a "disponibilidade do povo para morrer" em nome da causa que defendem, a defesa da sua terra.
Crise humanitária
Mais de 40 mil pessoas já passaram a fronteira com o Sudão em busca de segurança e as ONG no terreno admitem, apesar de difícil confirmação, que foram feitos milhares de mortos e feridos de um e do outro lado das forças em combate.
A severa crise humanitária que se adivinha para a região contextualizada pelas linhas de fronteira da Etiópia (Tigray), Sudão e Eritreia, está a juntar as vozes dos governos africanos da região, da União Africana e da ONU, no sentido de levar as partes em conflito à mesa das negociações, mas, até agora, isso tem sido rechaçado com veemência, tanto pelos homens e mulheres do movimento guerrilheiro de Debretsion Gebremichae como pelas forças federais de Abyi Ahmed.
E o pior, como têm notado analistas ouvidos pelas agências internacionais, é que Debretsion Gebremichael parece estar disposto a manter a decisão de não depor armas, prometendo levar a luta para todos os cantos da província e também das regiões limítrofes, e acusando o primeiro-ministro de estar a procurar esconder as derrotas do seu Exército no avanço sobre Tigray com ameaças de enviar os tanques sobre Mekelle e com um ultimato que sabia estar condenado a falhar.
Para já, apesar da dificuldade de obter informações através de fontes independentes por ser muito difícil o acesso às zonas de combate, as organizações internacionais, como a Amnistia Internacional e outras ONG"s, apontam para milhares de mortos e feridos, mais de 40 mil refugiados, vários massacres perpetrados por um e outro lado da barricada.
A ONU, cujo Conselho de Segurança tem marcada para a próxima terça-feira uma reunião virtual sobre a crise etíope, tem feito apelos sucessivos, inclusive através do seu Secretário-Geral, António Guterres, para que as hostilidades cessem, embora, para já, sem sucesso.
À medida que as horas passam, segundo as agências internacionais com correspondentes naquele país, milhares de pessoas continuam a caminhar em direcção à fronteira com o Sudão ou para fora de Tigray, o que está a gerar fortes preocupações à comunidade internacional, com a ONU a lançar repetidos apelos ao diálogo como forma de resolver o diferendo.
A verdade é a primeira vítima numa guerra
Porém, a aparente facilidade que Abiy Ahmed pretende demonstrar parece ser algo diferente na realidade, como um documento secreto elaborado pelas Nações Unidas e divulgado pelo The Guardian demonstra.
Segundo este documento, as forças etíopes estão a enfrenar uma oposição muito mais vigorosa do que é admitido oficialmente e através das suas comunicações, estando em aberto a possibilidade de as forças rebeldes, melhor conhecedoras da região, contando com os milhares de homens naturais da região que integram as forças armadas estacionadas nos quartéis do norte do país, darem início a uma estratégia de "atrito" que consiste em lançar ataques cirúrgicos prolongando no tempo este conflito, a ponto de isso poder retirar o ímpeto às forças regulares.
Devido às características do terreno, montanhoso, acidentado e com vastas áreas de difícil acesso para um Exército regular apoiado por artilharia e tanques, os guerrilheiros da TPLF, segundo analistas citados pelos media internacionais, podem com relativa facilidade prolongar indefinidamente este conflito, deixando o primeiro-ministro e Nobel da Paz Abiy Ahmed em sérias dificuldades perante a sua população e perante o mundo.
O histórico
Esta guerra resultou de meses a fio de um constante e sólido aumento das tensões entre os rebeldes e o Governo de Abiy Ahmed, depois de o seu Governo ter adiado eleições devido à pandemia mas com os lideres de Tigray a realizarem-nas na mesma, gerando uma insustentável quebra no já de si escasso diálogo e dando o mote para disparar a primeira bala, cujo ruído ainda hoje se ouve, tendo, pelo caminho, causado milhares de mortos e feridos e mais de 35 mil refugiados naquele que era um dos mais promissores países africanos.
A ofensiva governamental foi lançada depois de Abiy Ahmed ter acusado a TPLF de ter atacado uma guarnição militar regular, apoderando-se do armamento ali estacionado. As primeiras batalhas vieram mesmo dos céus, com a Força Aérea a fazer raides diários sobre Tigray.
As animosidades, como o Novo Jornal explica aqui, têm, no entanto, uma génese histórica, porque as elites políticas de Tigray, região com apenas 9 milhões dos 109 milhões de habitantes da Etiópia, o segundo país mais populoso do continente, governaram a Etiópia durante décadas até que o actual primeiro-ministro Abiy Ahmed, chegou ao poder, em 2018.
Abiy Ahmed é natural de Beshasha, região-estado de Oromia (cuja capital é Adis Abeba, em acumulação com a capital do país), com 35 milhões de habitantes, no centro da Etiópia, e o povo Oromo, histórico rival do povo Tigrayan, que conseguiu manter as rédeas do poder etíope nas últimas décadas, praticamente desde a morte de Haile Selassie, em 1974, também ele, tal como Abiy Ahmed, natural de Oromia.