Quase uma hora depois de espera pela minha bagagem, lá saí e percebi que os táxis oficiais todos perfilados à saída não tinham condutores (e se tinham ninguém se identificou como tal). Apareceu então um homem de meia-idade, estatura pequena e espesso bigode. Táxi informal. Deu-me o preço e eu disse que não pagaria aquele valor, pois era um absurdo cobrar tal importância para uma viagem que não levaria mais de dez minutos. Lá reajustamos o preço e o homem perguntou-me de onde vinha. Lisboa, respondi. A conversa que se seguiu é uma boa ilustração das relações entre os angolanos que nunca saíram do país e aqueles que, por várias razões, "estiveram fora".

O homem não precisou de muito para traçar-me o perfil. Afinal eu vinha de Lisboa. E mais. Vinha vestido de calças de ganga, t-shirt, casaco com capuz, e calçava ténis. Tomou-me certamente por um dos milhares de jovens que deixaram o país há muitos anos para trabalhar nas pedreiras em Portugal. Eu, sinceramente, gostei da caracterização e fui deixando o homem falar. Quis ver onde aquilo ia dar.

Foi dizendo que tinha dois cunhados - estava aí implícito que ele achava que eu estava na mesma situação que os seus cunhados. Eles tinham deixado o país há muitos anos durante a guerra e, mesmo agora, passado mais de dez anos desde que o país se tinha tornado pacificado, recusavam- se a regressar. O homem mostrava-se desconsolado. Como era possível que eles se recusavam a regressar, quando o país tinha crescido, quando o partido estava a trabalhar bem, quando Portugal estava em crise, e quando os estrangeiros vinham a Angola fazer exactamente o que muitos angolanos que estão fora podem fazer?

Ainda estávamos no aeroporto e o homem arrastava a minha mala. Tentou sair do parque atrás de uma carrinha cujo dono ele conhecia para não pagar o parquímetro. Não foi a tempo e veio a reclamar que tinha pago 800 Kzs. Custando o estacionamento 200 Kzs/hora, imaginei que o homem estava no aeroporto há quatro horas.

Saímos do aeroporto, rumo à Baixa e o homem sempre a falar sobre as grandezas do país e de como Angola se tinha tornado um país melhor. Pensei se isso não era o efeito da propaganda dos meios de comunicação oficial, mas também pensei na ironia de toda aquela interacção. Nos tempos da guerra, as pessoas que acreditavam e tinham um genuíno amor pelo país achavam que a juventude não deveria deixar Angola. Que as coisas um dia haveriam de melhorar e que aqueles que estavam a deixar o país haveriam de voltar, cabisbaixos e envergonhados, com a sensação de terem traído Angola, por terem saído quando ela mais precisava da sua juventude. Muitas pessoas que deixaram o país no passado estão de volta. O tal sentimento de vergonha por terem deixado o país é que não descortinei em ninguém com quem tenha falado sobre o assunto.

Agora, o que me parece ainda mais inaceitável para muitos angolanos, como o taxista que me levava a casa, é que mesmo apesar de não haver guerra em Angola, mesmo apesar de o país estar em franco crescimento, mesmo apesar de muitos estrangeiros estarem a fazer fortunas em Angola, ainda haja angolanos que se recusem a voltar; que prefiram levar vidas miseráveis em países batidos pelas crises económicas do que tentar a sorte na sua própria terra.

Eu ouvia o homem. E já perto do nosso destino final, quando íamos a passar pela Avenida Amílcar Cabral, fomos mandados parar por dois agentes da polícia. Não eram agentes de trânsito. Eram dois agentes da Polícia de Intervenção Rápida que se colocaram no meio da estrada, com as armas em riste e fizeram gestos ameaçadores para encostarmos o carro.

O taxista apanhou um susto, mas não se intimidou. O agente veio identificar o carro, e eu fiquei surpreendido com o contraste entre a forma como fomos mandados parar e os modos educados com que o agente interpelou o taxista. O taxista perguntou logo ao agente se aquilo eram formas de mandar parar um cidadão. Eu mantive-me calmo no meu lugar sem abrir a boca e admirado com a forma como o taxista e o polícia falavam. Era como se tivessem um código secreto. Era como se o taxista tivesse encontrado um miúdo que vira crescer no bairro e que se tinha transformado em agente da polícia. E fiquei a pensar se o tal agente também falaria assim, com tamanha delicadeza, se fosse eu ao volante, ou um dos meus amigos estrangeiros - ou que se expressam como quem passou muito tempo no estrangeiro. Não houve gasosa e deixaram-nos seguir.

Perguntei ao taxista o que era aquilo. Ele disse que aquilo era polícia de protecção porque havia muito crime na cidade. Era uma chatice, continuou, mas era para o nosso bem. E eu que pensei por um instante que o homem me fosse dar razão, que fosse compreender afinal que há gente que não volta por haver ainda no quotidiano de Luanda essas coisas que são inadmissíveis, como se vivêssemos em estado de emergência.