No documento tornado público, no qual o Governo apresenta os destaques do RNV a ser apresentado, pode ler-se o seguinte:
"Angola empreendeu profundas reformas estruturais destinadas a consolidar o Estado de direito democrático e a abrir caminho para um desenvolvimento inclusivo e sustentável. Os esforços para combater a corrupção, fortalecer a estabilidade macroeconómica e promover o desenvolvimento social são pilares fundamentais desta transformação."
[...]
"Como resultado de reformas económicas orientadas para a diversificação da estrutura económica, Angola tem experimentado um crescimento sustentado e inclusivo."
Ocorre que, conforme dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), se entre 2017 e 2023 o Produto Interno Bruto (PIB) angolano, em termos reais, aumentou numa média anual de 0,4% (2,5% entre 2020 e 2023), o seu nível per capita caiu numa média anual de cerca de 2,6% (0,5% entre 2020 e 2023). Por outro lado, nos últimos 5 anos (2020-2024), a Taxa de Desemprego esteve sempre muito próxima ou acima dos 30% (acima dos 50% entre a população jovem de 15 a 24 anos), com a média acima dos 31%, ao mesmo tempo que mais de 80% dos empregos eram informais.
Tenha-se também presente que, em Angola, no acesso a serviços públicos, de tão frequentes, todo e qualquer residente - e não só - já terá e tem experimentado, se confrontado ou sido afectado, directa ou indirectamente, por pelo menos uma das situações seguintes:
Sistemas informáticos em baixa em: (i) bancos - prevenindo a realização de operações; (ii) instituições do Estado, incluindo em repartições fiscais
- impedindo o tratamento de documentos, entre os quais o Bilhete de Identidade, a Carta de Condução e a Certidão de Registo Criminal, bem como a realização de actos notariais e o pagamento de impostos, como decorrência da impossibilidade de se extrair Notas de Liquidação da Administração Geral Tributária (AGT) e a consequente emissão da RUPE ; e (iii) em clínicas e hospitais
- afectando o acesso aos serviços de assistência médica, por problemas de gestão interna dos processos e de gestão dos seguros de saúde; Cortes de electricidade anunciados para efeitos de manutenção e intervenção para a melhoria da prestação dos serviços, mas mais cortes ainda não anunciados e sem que a empresa fornecedora contratada apresente alguma justificação em relação às causas e eventual duração, além da fiabilidade não melhorar;
Falta de fornecimento de água da rede pública - que já é efectuado com restrições - por semanas, meses e até anos, sem que a empresa contratada se digne a dar qualquer satisfação, nem disponibilizar alternativas de abastecimento, mas continuando a fazer cobranças por estimativa, mesmo havendo contadores;
Elevado tempo de espera para ser atendido nas unidades sanitárias públicas, assim como deficiente atendimento por insuficiente capacidade de diagnóstico (por falta de material gastável, de reagentes laboratoriais, de equipamentos ou de pessoal técnico, entre outros recursos), falta de pessoal técnico e especialistas e falta de medicamentos; e
Falta de vaga para um educando nas instituições públicas de ensino, ao ponto de muitos se verem obrigados a pernoitar diante delas, em filas, numa tentativa de assegurar a matrícula, já que a insuficiência de vagas tem levado a que muitas crianças e adolescentes em idade escolar fiquem, a cada ano lectivo, fora do sistema de ensino, de tal modo que no ano lectivo 2024/25 se estima que tenham ficado de fora mais de 7 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar.
Acresce-se a isso o facto de se calcular que cerca de 37,5% da população com 15 ou mais anos - perto de 7,5 milhões de habitantes - não possuir o Bilhete de Identidade de Cidadão Nacional, sem contar com as situações de descaso com a salubridade do meio (saneamento básico, recolha de resíduos sólidos, animais vadios, etc.), sistemas de transportes públicos e iluminação pública, entre outros.
Em face desse quadro, pode-se concluir que os serviços públicos em Angola - sejam eles prestados por instituições públicas, por empresas públicas ou por entidades privadas por meio de concessão ou não - apresentam-se com reduzida cobertura, baixa fiabilidade e qualidade sofrível, isso quando existentes. Então, sendo que a incapacidade de fornecer serviços públicos razoáveis é um dos atributos de um Estado Frágil, compreende-se que Angola se tenha apresentado, em 2006, como o 37.º Estado mais frágil entre 179 países avaliados, tenha melhorado para o 59.º em 2010, mas em 2024 tenha piorado de novo para o 38.º Estado mais frágil . E nesse período, num conjunto de 12 indicadores que informam o índice (desigualdade económica, pressão demográfica, legitimidade do Estado, refugiados e deslocados internos, elites faccionadas, direitos humanos, intervenção externa, serviços públicos, aparelho de segurança, reivindicações de grupo, fuga humana e de cérebros e economia), o respeitante aos Serviços Públicos teve a pior média, com 8,5 pontos, numa classificação de 0 (excelente) a 10 (péssimo).
Então, a realidade do País registar uma queda contínua do PIB per capita (queda global de 14,6% entre 2020 e 2023), uma taxa de desemprego persistente ao nível dos 30% (acima dos 50% entre os jovens) e um acesso aos serviços públicos pelos cidadãos que muito se aproxima ao "l"article 15: debrouillez-vous!" - o que deixa muitos para trás -, dificilmente se concilia com a visão reportada no RNV de que "Angola tem experimentado um crescimento sustentado e inclusivo". E, sem o reconhecimento da realidade, dificilmente se adoptarão as medidas susceptíveis de proporcionar verdadeiro crescimento sustentado e inclusivo.
*Economista
1 Conforme fontes diversas, "l"article 15", cuja disposição se refere como sendo "Debrouillez-vous!" (desenrasquem-se), reporta-se a um artigo imaginário da Constituição do Congo Kinshasa, que surgiu durante a crise que emergiu no processo da independência do território entre 1960-1965, altura em que a região do Kasai do Sul terá declarado secessão, sendo que a sua constituição conteria 14 artigos. Nesse período de crise, os cidadãos terão tido demasiadas privações às quais o Estado não estava em condições de atender, de modo que cada um buscava formas de as ultrapassar - o debrouillez. A expressão popularizou-se depois no Zaire de Mobutu.
2 Cf. em:https://hlpf.un.org/countries/angola/voluntary-national-review-2025.
3 Referência Única de Pagamentos ao Estado.
4 Conforme dados constantes no Fragile Sates Index Anual Report 2024 do Fund for Peace (cf. em https://fragilestatesindex.org/country-data/).