E é por isso, em grande medida, sendo a medida restante o papel de África como epicentro da disputa global entre as grandes potências para redesenhar as fronteiras da nova ordem mundial com Pequim e Moscovo de um lado a forçar a mudança, contra o ocidente liderado pelos Estados Unidos, do outro, empenhados em manter as coisas como estão desde finais da II Guerra Mundial.

E é aqui que entra África neste "grand jeu" mundial, porque a mudança de uma ordem mundial como a actual levaria a que organizações como a União Africana fossem merecedoras de outra consideração considerando que hoje a voz do continente é comummente ignorada, excepto quando os seus posicionamentos interessam às grandes potências, como é o caso das votações nas Nações Unidas ou quando se trata de aceder aos seus abundantes e únicos recursos naturais.

Desde o fim da URSS (União Soviética), são os EUA, porque dominam as ferramentas de controlo global - dólar, ainda a moeda franca planetária, FMI e Banco Mundial, além da maioria ocidental nos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU - quem detém a voz de comando essencial.

Mas é isso que, como ficou claro ao longo de 2022, com o decurso paralelo da guerra na Ucrânia, China e Federação Russa assumiram como política oficial alterar, fazendo desmoronar a ordem mundial baseada em regras ditadas pelo ocidente para uma nova arquitectura de decisão global baseada na cooperação entre iguais, sendo que existe agora a dúvida se Pequim mantém esse desígnio com a chegada de Qin Gang à liderança da sua diplomacia ou se a sua reconhecida proximidade a Washington, onde foi embaixador durante anos, perspectiva mudanças de posição e objectivo.

Para que tal alteração ocorra, o continente africano, com 54 países e mais de 1,2 mil milhões de habitantes, é essencial, embora o ponto fulcral nem seja esse, sendo-o sim a necessidade estratégica dos protagonistas deste redesenhar do "comando" planetário de terem acesso privilegiado aos recursos minerais africanos que são insubstituíveis nas industrias de ponta, como o coltão - 80% dos stocks mundiais estão na RDC - o cobalto ou ainda as denominadas "terras raras".

E é por isso que os EUA apostam agora na recuperação do tempo perdido depois de, nos últimos 20 anos, terem deixado de focar a sua atenção em África, permitindo a entrada sem obstruções à China, com as suas incomparáveis linhas de crédito bilionárias, essenciais para a construção de infra-estruturas, ou a sua recuperação, num continente claramente atrasado neste domínio, como foi o caso de Angola, e também da Rússia, esta mais concentrada nos últimos anos, estão a procurar, com ganhos substanciais de influência em detrimento dos países ocidentais, nomeadamente as antigas potências coloniais, Franca, Reino Unido, Alemanha, e mesmo Portugal.

Para África, rápido e em força...

... parece ser o lema das grandes economias ocidentais, desde logo os Estados Unidos da América, que, com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, em 2020, procuraram reverter a política de abandono da influência em África que foi confirmada em absoluto por Donald Trump, mas começada com Barack Obama.

E se Joe Biden teclou "Ctrl Alt Del" na política de Washington para o continente, com a Cimeira EUA-África em Dezembro de 2022, à qual colou a defesa de uma presença continental no grupo dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como defende há décadas a União Africana, e prometendo uma nova atenção aos seus problemas, a França, que vê o seu rasto africano a desvanecer dia após dia com o "assalto" russo e chinês à sua "FranceAfrique", especialmente na África Ocidental, também embarcou na missão de recuperar o tempo perdido.

Todavia, esta procura dos norte-americanos por um "regresso" triunfal a África, tende a esbarrar na solidez das "fortificações" de Pequim e Moscovo, desde logo porque se Washington não se consegue livrar da "obrigação" de impor os seus valores democráticos e no âmbito dos Direitos Humanos, como Joe Biden deixou claro aquando da recente Cimeira em Washington, Pequim e Moscovo apostam na não-interferência e na cooperação linear, sem obstáculos morais nessa caminhada, o que é lido no continente, pelo menos em grande parte dos países, onde abundam as autocracias e os "poderes fortes", como a posição correcta, porque não se apresentam como "lanças em África" com as quais procuram impor os valores ocidentais.

Joe Biden usou uma expressão curiosa nessa Cimeira de Washington, afirmando que os Estados Unidos estão "all in" em África, que mais que uma tradução literal, deve ser lida como um avanço sobre o continente sem reservas nem limitações de meios, pondo na mira a China e a Rússia, embora, depois, tenha voltado a colocar como compromisso não abdicar da defesa dos tais valores ocidentais ligados à democracia liberal e aos valores ocidentais no âmbito dos Direitos Humanos, que nas capitais do continente, comummente, é lido como... ingerência na política doméstica.

Ainda assim, o Presidente dos EUA, embora ainda sem data definitiva, está a preparar com afinco a sua deslocação a África, prometida aos 50 lideres africanos que com ele se sentaram à mesa na capital norte-americana, sendo quase certo que Luanda será uma das capitais no "tour" continental de Biden.

Isto, porque a presença do "líder" do ocidente na capital angolana, quando ocorrer dessa prometida visita oficial a África, é, em boa medida, uma devolução da, embora ainda por confirmar em pleno, reviravolta de Luanda na sua política externa.

Mudança essa que contempla uma clara aproximação aos EUA em, provavelmente, detrimento de Moscovo e, eventualmente, de Pequim, como ficou claro na forma como votou uma proposta na AG da ONU condenando a Rússia, ou ainda como os Secretários de Estado, Anthony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, após um encontro com João Lourenço em Washington, elogiaram a abertura de Angola para "fazer compras" nos EUA, referindo-se, quase certo, à área militar, onde a Rússia é, desde a "Guerra Fria" até agora, fornecedor quase exclusivo.

Mas também Paris e Berlim estão alinhados neste esforço de recuperar tempo perdido, com as suas ministras dos Negócios Estrangeiros, Chaterine Colonna, e Annalena Baerbock, a caminho da Etiópia, onde, curiosamente, o recém-empossado ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang, iniciou, simbolicamente, a sua primeira visita ao exterior, seguindo depois para o Gabão, Angola, Benim e Egipto.

As duas chefes da diplomacia dos dois mais importantes países europeus agendaram e anunciaram esta visita conjunta, para 12 e 13 deste mês, à Etiópia já depois de se saber da chegada de Qin Gang a Adis Abeb, cidade onde está sedeada a União Africana (UA), justificando-a com o reforço da aposta na paz naquele pais, em guerra desde 2021, embora em fase de transição para um entendimento entre os rebeldes de Tigray e o Governo etíope.

Mas é impossível afastar do "ecrã" a questão do "grand jeu" que decorre em África entre o ocidente e as potências russa e chinesa, porque a Etiópia tem sido, claramente, no continente oriental, a peça-chave dos "jogadores", não porque ali se encontra sedeada a UA, mas também porque se trata do segundo país mais populoso de África, a seguir à Nigéria, com mais de 115 milhões de habitantes.

Washington não perdoa... nem dorme

Mas Washington parece não se ficar pela simpatia na abordagem, porque, ao que noticia o Wall Street Journal, o Governo sul-africano foi alvo de uma advertência por ter dado guarida num dos seus portos a um navio que está sob sanção norte-americana, apesar de a África do Sul não fazer parte dos países que aplicaram quaisquer castigos a Moscovo no âmbito da invasão à Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022.

Segundo o jornal norte-americano, o navio "Lady R." terá aportado a uma estrutura portuária sul-africana com uma carga por identificar, existindo a suspeita de que possa ser armamento carregado ali e destinado ao conflito na Ucrânia, embora, nota, essa informação não foi confirmada por qualquer fonte relacionada com esta questão.

O navio estava sob protecção das forças armadas do país africano e isso indicia que a sua carga possa conter aspectos que firam as sanções aplicadas pelo ocidente, embora não implique o Governo de Pretória, porque a África do Sul não aderiu a quesiquer sanções a Moscovo.

No entanto, este episódio levou Washington a fazer um aviso sério ao Governo de Cyril Ramaphosa, porque a entrada do "Lady R." na base naval da cidade de Simon deixa em aberto a possibilidade de a sua carga ser efectivamente armamento, até porque as sanções aplicadas a este navio resultam do registo do seu uso para esse efeito.

Algumas fontes notam que Pretória está a ponderar a possibilidade de contestar a intromissão de Washington nos seus assuntos internos, até porque algumas fontes citadas pelo jornal norte-americano apontam para que o navio em questão tenha feito um transporte de munições russas para as forças armadas sul-africanas e não o contrário.

Isto, porque os sistemas de armamento produzidos na África do Sul e as suas munições não são compatíveis com os fabricados e usados pela Federação Russa, sendo verdade que Pretória adquire parte do seu equipamento militar à indústria de armamento russa.

Contra-ataque americano não apanhou Moscovo e Pequim distraídos

O encontro alargado de Joe Biden com os líderes africanos em Dezembro de 2022, são poucos os que não estiveram presentes nesta reunião de três dias - dos 54 países do continente, foram convidados 49 -, era e é claro, partir em busca do tempo perdido e mitigar os efeitos da crescente influência de Pequim e Moscovo.

Isto, porque, como a História não deixou de cravar a ferro em brasa no continente, depois de Obama chegou à Casa Branca o menos inclinado para África de décadas de lideranças norte-americanas, Donald Trump, sendo que foi no seu consulado que a Rússia mais ganhou tracção no grand jeu africano, facto que ainda hoje se prolonga e adensa, como é visível na forma como em alguns países do Sahel, americanos e franceses são fortemente apupados e os russos elogiados; o mesmo tipo de elogio dedicado à China, que se foca na cooperação económica e afasta questões políticas e sociais da mesa das negociações.

Quando Biden mandou divulgar que iria realizar esta Cimeira, quase um ano antes, isso não deixou de aparecer nos radares de Moscovo e Pequim, com o Kremlin a enviar vários dos seus diplomatas de topo para sucessivos périplos africanos, sendo que um destes foi mesmo liderado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, tendo a diplomacia chinesa optado por um empenhado mas menos exposto esforço de contenção de danos através dos seus canais diplomáticos bem lubrificados em duas décadas de proximidade única e multibilionária na forma de infindáveis linhas de crédito pagas com recursos naturais que permitiram, em parte, o agigantamento industrial do "gigante" asiático.

Uma das questões mais rugosas para ultrapassar por parte dos EUA são os laços históricos herdados pelo Moscovo de hoje do Moscovo da então União Soviética, que é visível, além da gratidão que alguns líderes africanos não escondem, como o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, pelo apoio dos russos nas lutas de libertação, mas também os fortíssimos laços na cooperação militar que se traduzem na continuada condição de maior vendedor de equipamento de guerra ao continente, que não pode ser obliterado de um dia para o outro porque há décadas de experiência e formação obtida e mantida com as armas "soviéticas" e trocá-las por norte-americanas exigiria anos a fio de formação e adequação, o que em nada agrada às chefias mais veteranas.

Há, no entanto, sinais de que alguns Estados africanos podem estar a repensar a sua posição, especialmente bem-vinda para Washington agora que está em curso uma das mais catastróficas guerras na Europa em décadas e que opõe directamente a Rússia e a Ucrânia, mas que, na verdade, é um confronto militar entre equipamento ocidental (NATO/EUA) e a capacidade bélica da Federação Russa, como se viu quando, na última das resoluções aprovadas na ONU condenando Moscovo, alguns países, entre estes Angola, alteraram o seu voto, adequando-o aos interesses dos Estados Unidos - autor da resolução -, embora esses votos pouco ou nada tenham alterado na correlação de forças na Assembleia-Geral das Nações Unidas, excepto no campo simbólico, sendo aí Luanda o caso mais interessante pelo vasto passado que une Angola e a Rússia.

Facto sem réplica é que o continente africano é hoje o mapa de algumas das mais exigentes disputas por influência geoestratégica em todo o mundo, não só porque é no continente africano que estão localizadas algumas das quase exclusivas reservas de minérios fundamentais e insubstituíveis - como o conjunto de minerais denominados terras raras, ou como o coltão, com 80% dos stocks conhecidos na RDC, ou o cobalto -, nas novas tecnologias e indústrias de ponta, na transição energética que pode salvar o mundo das alterações climáticas ou os velhinhos mas persistentes na sua importância planetária: ouro, diamantes, gás, petróleo, mercúrio, fosfatos, tungsténio...

E se, como os ministros chinês (agora ex-ministro) e russo dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi e Sergei Lavrov, deixaram claro num encontro no início de 2022, pouco depois do arranque da guerra na Ucrânia, o que está em causa é a criação de uma nova ordem mundial, com o ocidente de um lado e um eixo Pequim-Moscovo fortificado com ligações sólidas aos BRICS, e do outro o chamado ocidente alargado - EUA, União Europeia, Austrália, Japão...-, então, o papel de África é muito mais que o de fornecedor de matérias-primas, pode mesmo ser o fiel da balança, o que não deixa de ser irónico, como alguns analistas já admitem, porque basta os africanos saberem negociar e trabalhar os corredores, para serem os grandes vencedores desta disputa global de titãs...

E Angola pode e deve estar na linha da frente deste novo capítulo na História do continente, até porque, como disse, citado pelo AfricaNews, Ervin Massinga, do Gabinete dos Assuntos Africanos no Departamento de Estado, em Washington sabe-se que "muito está a acontecer em Angola, há muito potencial no ar" e não só nas áreas tradicionais do petróleo e dos gás, atirando a isca mais apetecida na Cidade Alta, que é a disponibilidade para atrair para Luanda investimento norte-americano, especialmente nas telecomunicações, sector dos medicamentos e na indústria...

Isto, depois de João Lourenço ter recebido em audiências, em Washington, durante a Cimeira de Dezembro, os secretários de Estado, Anthony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, em que o Chefe de Estado angolano repetiu com renovado empenho a condição de abertura de Angola para o investimento estrangeiro, o que acompanha com um conjunto alargado de reformas económicas e políticas que os americanos podem comprovar ouvindo o embaixador norte-americano em Luanda, Tulinabo S. Mushingi, nascido no Congo, que não se tem poupado a esforços para elogiar a governação angolana nesse aspecto.

E depois destes encontros, Lourenço frisou isso mesmo o facto de Angola estar a dar sinais claros de que está apostada em reforçar a cooperação com os EUA, com passos responsáveis que dão corpo a um ponto de viragem na forma como Luanda olha para as suas relações externas, de forma consciente face ao histórico do relacionamento com Washington, que é de todos conhecido porque, ao longo de anos de guerra civil, ocupavam "barricadas" distintas e importantes no computo da Guerra Fria.

Mas, e o que pode África obter de Washington que não tem da China e da Rússia?

Para começar, e enquanto a ordem mundial se mantém norte-americanizada, um lugar à mesa. Um lugar à mesa de tudo quanto for tomada de decisões com impacto global ou regional, onde estejam em causa interesses do continente.

E se os EUA, de per si, não concedem este tipo de acessos, sem o seu apoio dificilmente se conseguem, desde logo onde as coisas mexem e o que se decide mexe com o mundo, seja no que diz respeito à economia, as reuniões do G20 ou do G7, seja em Breton Woods (FMI-Banco Mundial) e, obviamente, um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU Pequim e Moscovo já o defendem há muito, falta os EUA abrirem essa porta -, mas também em tudo o que rodeia as alterações climáticas, Direitos Humanos ou a própria democracia e o Estado de Direito, onde África é sempre visto como o "sítio" onde este chega sempre tarde e a más horas.

Uma das questões que urge dar resposta é o porquê da fraca ou inexistente representação africana em algumas das mais faiscantes organizações regionais em todo o mundo, como, por exemplo, a Organização do Indo-Pacífico, onde é Washington que indica o "porteiro".

Mas também podem exigir aos EUA uma mãozinha noutros domínios, que não é "pedinchar" com a mão estendida, como Nana Akufo-Addo, o Presidente do Gana, criticou, que é abrir a porta do ocidente para a deslocalização de saberes em torno das novas tecnologias, de forma a que também em África se possa sair da longa noite de escuridão tecnológica simplesmente porque os acessos a esse saber não são facilitados como o são noutros continentes, como se houvesse uma "master mind" a garantir que os países africanos não podem passar da fase de exportadores de matéria-prima, o que de resto tem sido repetido por vários lideres continentais, sendo João Lourenço um deles.