Um camião das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) foi atacado por milicianos rebeldes próximo de Tshisuku, província do Kasai, quando deixavam a fronteira com Angola.
Este mais recente episódio de violência levou a um aumento da pressão sobre as populações que cada vez em maior número procuram a Lunda Norte para escapar dos confrontos que há mais de um ano se travam entre as milícias de Kamwina Nsapu e as forças de segurança congolesas.
O ataque teve lugar no Domingo, quando os veículos militares se aproximavam da localidade de Tshisuku e se depararam com uma barricada dos milicianos, que, segundo relatos da imprensa congolesa, os recebeu com um tiroteio ao qual as FARDC ripostaram, acabando por matar um número indeterminado de rebeldes.
É um dos muitos episódios de violência que estão a empurrar milhares de habitantes da província do Kasai, com fronteira extensa a ligar à Lunda Norte, para Angola, e que estão actualmente a ser recebidas em centros de acolhimento na região do Dundo, onde já estão mais de 20 mil, ou, em número impossível de verificar, junto de familiares, devido às fortes ligações sanguíneas (étnicas) que atravessam a fronteira.
O Governador provincial da Lunda Norte, Ernesto Muangala, que lidera a comissão multissectorial criada pelo Governo angolano, e que conta com a participação de agências da ONU, como o Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR) ou o Unicef, divulgou ontem que os centros de acolhimento criados, um deles o campo do Nzaji, recuperado do tempo da guerra, já estão a lidar diariamente com 20 093 pessoas, entre estas mais de um terço são crianças.
Citado pelo JA, Muangala considera que a situação actual é crítica e que pode ter consequências para a Lunda Norte, não só pelo facto de os centros de acolhimento estarem a exigir recursos ao Estado e ao Governo Provincial, mas também porque os laços familiares entre os dois lados da fronteira são óbvios e extensos.
Isso mesmo está a ser constatado nos postos fronteiriços de maior utilização por parte dos refugiados, que são actualmente os de Itanda, Nordeste e Furi-3, no município do Cambulo, e os de Txissanda e Fortuna, município do Chitato.
Ligações "perigosas"
Mas o que mais preocupa as autoridades nacionais não é o fluxo de refugiados que atravessa as fronteiras, é sim o outro, que não passa pelo registo oficial e que é constituído por, eventualmente, milhares de pessoas que têm como destino a casa de familiares ou conhecidos.
O que Ernesto Muangala teme e quer evitar é, como explicou num encontro este fim-de-semana com representantes das igrejas, organizações da sociedade civil e autoridades tradicionais, que estes milhares de pessoas não constem dos registos oficiais dos refugiados.
Essa possibilidade, no limite, pode abrir estar a permitir a entrada em Angola, por exemplo, acidadãos congoleses a contas com a justiça, sendo milicianos ou não.
Para evitar esse cenário, o governador provincial da Lunda Norte apelou a que as igrejas, organizações e autoridades tradicionais estejam atentos a estas movimentações por forma a que todas as pessoas sejam encaminhadas para os centros de acolhimento onde têm à sua disposição abrigos, assistência média e alimentação.
Muangala deixou ainda a garantia de que as FAA e as polícias angolanas estão presentes ao longo das fronteiras para impedir que o conflito entre as forças aramadas da RD Congo e as milícias não avance para território angolano, não só pela proximidade territorial mas também porque a isso "convidam" as ligações étnicas.
"As forças estão em prontidão. Há um intenso patrulhamento das nossas forças ao longo da fronteira com meios necessários para garantir a segurança da fronteira", garantiu, deixando ainda a ideia de que não está a ser ignorado o risco de que muitos destes refugiados procurem aproveitar a situação para se deslocarem para outros pontos da província e do país.
Para quando a "situação de emergência"?
Um dos problemas que pode não estar a ser devidamente equacionado é, segundo a ONU, a capacidade de resposta local para a dimensão do problema.
O ACNUR já lançou um alerta sobre a insuficiente resposta local, para as condições deficitárias do acolhimento, e o escritório das Nações Unidas que faz a gestão das situações humanitárias, o UNOCHA, já tornou público o desejo de que o Governo angolano declare uma "situação de emergência" para melhor potenciar a ajuda internacional.
O UNOCHA justifica esta posição com a constatação de que as condições de acolhimento nos dois campos criados para o efeito são muito deficientes e a capacidade de resposta das autoridades locais não mostra estar a ter a eficácia que a situação de emergência requer.
"As autoridades locais têm capacidade limitada e não estão preparadas para o número de pessoas que já chegaram bem como as que se estima que venham a chegar ao país em breve", nota este escritório das Nações Unidas na mesma nota à imprensa divulgada pelo seu boletim online "relief web".
Kamwina Nsapu
A Lunda Norte é um dos refúgios preferidos pelos milhares de habitantes das províncias do Kasai Central e Oriental, na República Democrática do Congo (RDC), que procuram escapar dos confrontos armados entre as forças de segurança do país vizinho e as milícias tribais do antigo chefe tradicional Kamwina Nsapu.
Destes confrontos, motivados por razões relacionadas com o exercício do poder tradicional, já resultaram mais de 400 mortos e muito acima de um milhão de deslocados.
A violência deflagrou em meados de 2016, quando o chefe tribal Kamwina Nsapu viu as autoridades de Kinshasa lhe negarem a autoridade administrativa que os chefes tradicionais têm na RDC, levando-o a organizar as milícias que ficaram conhecidas pelo seu nome.
Nsapu foi, entretanto, morto pelas forças de segurança em Agosto e, desde então, a violência alastrou a outras províncias a partir do Kasai Central, nomeadamente para o Kasai Oriental, sendo que os combates chegaram mesmo à beira da fronteira com Angola, havendo mesmo registo de confrontos entre as milícias e grupos da etnia Tchokwe, com forte presença em ambos os aldos da fronteira.
Perante este quadro de imprevisibilidade, as Forças Armadas Angolanas deslocaram diversas unidades para a linha de fronteira e iniciaram contactos com as chefias militares congolesas para prevenir eventuais questões de soberania e estabelecer normas para lidar com as milícias nas zonas de fonteira.
É possível que a situação no Kasai acalme em breve
Confrontado com a evidência de uma impossível solução militar, devido ao elevado número de fiéis de Nsapu, forte implantação regional e a coragem demonstrada em combate por parte das suas milícias, e face às preocupações crescentes da comunidade internacional, com Angola na linha da frente, o Governo de Joseph Kabila optou por encetar conversações com a família do antigo chefe costumeiro por forma a por fim a um dos mais graves, de entre vários em curso na RDC, que varrem o país.
Uma das reivindicações da família de Kamwina Nsapu e dos seus aguerridos seguidores, já realizada, era proporcionar ao falecido as cerimónias fúnebres tradicionais que não lhe foram concedidas aquando da sua morte em combate.
Para isso, Kabila enviou a Kananga, capital provincial do Kasai e coração deste universo costumeiro de Nsapu e das suas milícias, o seu ministro do Interior, Emmanuel Ramazani Shadary, para se sentar à mesa com os seus representantes.
A família de Nsapu que continua a reinar segundo os princípios costumeiros na região, tem um conjunto de reivindicações que, agora, o Governo de Kinshasa se viu obrigado a aceitar, especialmente quando a estabilidade em Kinshasa, onde também morreram nos últimos meses centenas de pessoas em confrontos de natureza política, depende da realização de eleições até final de 2017 e não é sustentável para o regime manter tantas "frentes" de tensão.
Por outro lado, as milícias já deixaram claro que têm de ser criadas condições para a designação de um novo chefe tradicional por parte da família reinante, cuja entronização resulta de uma formalidade a cargo do ministro dos Assuntos Costumeiros... o que também já aconteceu, tendo sucedido a Nsapu um dos seus filhos, que prontamente, há cerca de duas semanas, apelou à calma e à deposição das armas.