"A trágica redução dos discípulos de Cristo, aqui e em todo o Médio Oriente, é um dano incalculável não só para as pessoas e comunidades envolvidas, mas também para a própria sociedade que eles deixaram para trás", disse Francisco, que rezou pelas "vítimas da guerra" contra o grupo "jihadista" Estado Islâmico (EI),

"Com efeito, um tecido cultural e religioso assim rico de diversidade é enfraquecido pela perda de qualquer um dos seus membros, por menor que seja, como, num dos vossos artísticos tapetes, um pequeno fio rebentado pode danificar o conjunto", continuou, num cenário marcado pela destruição naquela que foi uma próspera cidade comercial durante séculos e onde as autoridades católicas não conseguiram encontrar uma igreja adequada para acomodar o Papa Francisco.

Na praça de Hosh al-Bieaa, onde havia quatro igrejas cristãs, incluindo a igreja al-Tahira, com mais de 1.000 anos, e agora é um quadro de desolação marcado pela passagem do Estado Islâmico, Francisco transmitiu na sua oração: "Se Deus é o Deus da vida, e Ele o é, para nós não é permitido matar os nossos irmãos em seu nome".

E na antiga capital iraquiana do autoproclamado "califado", o Papa continuou: "Se Deus é o Deus da paz, e Ele o é, não nos é lícito fazer guerra em seu nome. Se Deus é o Deus do amor, e Ele o é, não nos é permitido odiar os irmãos", implorando o perdão de Deus por tudo o que aconteceu, enquanto confiava a Ele "as muitas vítimas do ódio de o homem contra o homem".

Só com paz e reconciliação "esta cidade e este país podem ser reconstruídos e será possível curar corações despedaçados pela dor", afirmou.

Sob protecção muito elevada, o Papa falou sobre a situação da comunidade cristã do Iraque - uma das mais antigas do mundo, mas também uma das que conheceu mais exilados.

"Aqui, em Mossul, as trágicas consequências da guerra e da hostilidade são muito evidentes. É cruel que este país, o berço da civilização, tenha sido atingido por uma tempestade tão desumana, com antigos locais de culto destruídos e milhares e milhares de pessoas, muçulmanos, cristãos, yazidis e outros, expulsos à força ou mortos ", declarou.

Nos arredores, agentes e postos de segurança estavam por toda a parte na província, onde os radicais islâmicos ainda estão escondidos, apesar da derrota militar do EI no final de 2017.

Encontro histórico entre o Vaticano e o Islão

Esta viagem do Papa Francisco ao Iraque fica marcada pelo seu encontro com o principal líder religioso xiita, o aiatolah Ali al-Sistani, em Najaf, um gesto considerado histórico nas relações entre o Vaticano e o Islão.

Na reunião, que decorreu à porta fechada, o aiatola Ali al-Sistani, uma das figuras mais poderosas do Islão e cujos decretos religiosos (fatwa) levaram muitos muçulmanos a mobilizarem-se em 2014 contra o Estado Islâmico, com a criação da Forças de Mobilização Popular, em Janeiro de 2019, afirmou ao Papa Francisco que os cristãos no Iraque deveriam viver em paz e com todos os direitos, expressando a sua "preocupação de que os cidadãos cristãos vivam, como todos os iraquianos, em segurança e paz, e com todos os seus direitos constitucionais", de acordo com um comunicado do gabinete de Al Sistani.

O gabinete de Al-Sistani divulgou fotos do encontro entre os dois líderes religiosos, que ocorreu sem a presença da imprensa, em que Francisco, vestido de branco, e Al-Sistani, de preto, são vistos em dois sofás da modesta casa do líder xiita.

Durante este encontro, segundo o comunicado, abordaram "os grandes desafios que a humanidade enfrenta neste momento e o papel da fé" e fizeram referência específica às "injustiças, assédios económicos e deslocamentos sofridos por muitos povos" da região, "especialmente o povo palestiniano nos territórios ocupados" por Israel.

Finalmente, Al-Sistani enfatizou o "papel que os grandes líderes religiosos e espirituais devem desempenhar para conter todas essas tragédias".

Numa viagem considerada extremamente perigosa, o Papa Francisco viajou num avião ou num helicóptero , durante a maior parte dos 1.445 quilómetros do seu percurso iniciado na sexta-feira, para evitar áreas onde células "jihadistas" clandestinas ainda estão escondidas. Os poucos quilómetros percorridos por estrada foram em carros blindados.

E a acrescentar a tudo isso, o confinamento total decretado até o final da sua visita, que acontece na manhã de segunda-feira.

Uma viagem que será uma marca de relevo do papado de Francisco

Esta visita do Papa Francisco ao Iraque mostra bem a importância que tem para a cristandade, sendo hoje terra de entre 300 mil a 500 mil cristãos, mas que já foi, ainda há menos de uma década, lar de mais de 1 milhão.

Na sua maioria, os cristãos do Iraque, a mais antiga comunidade cristã em todo o mundo com presença contínua num território, que era tolerada e protegida durante o regime de Sadam Hussein, deposto pela invasão norte-americana em 2003, foram obrigados a fugir para a Europa e alguns países vizinhos mais tolerantes, pressionados pelo radicais islâmicos que ocuparam o território à medida que as forças da coligação internacional liderada pelos EUA foram deixando a região..

Muitos foram mortos e os templos cristãos foram quase todos destruídos ou parcialmente destruídos depois de transformados pelo estado islâmico em cadeias e tribunais corânicos. Na sua maioria são de origem Assíria com traços culturais e linguísticos aramaicos, sendo ainda relevante a presença de cristãos árabes e arménios.

As cidades iraquianas de maior concentração histórica de cristãos são, além de Bagdad, Basra, Mosul, Erbil, Dohuk, Zakho e Kirkuk , ou ainda Nineveh.

Francisco, aos 84 anos, foi o primeiro Papa a visitar o Iraque e esta será, seguramente, uma marca de relevo do seu papado, não só pelo risco inerente, seja pelas armas, seja pela pandemia da Covid-19, mas também porque se reveste de uma aposta clara na recuperação das comunidades cristãs no país e ainda um incentivo para a reconstrução de algumas igrejas, entre estas estão das mais antigas do mundo.

Esta visita tem ainda uma forte componente política porque o Iraque é um país maioritariamente xiita, o mesmo grupo etno-religioso do Irão e da Síria, porque abre o país ao mundo, e surge depois de Francisco ter visitado os Emirados Árabes Unidos (na foto), país de maioria sunita, o outro grande grupo religioso do Islão e tradicionalmente de relacionamento difícil ou mesmo inimigos mortais na perspectiva dos radicais de um e do outro lado.