Há meses que as Nações Unidas insistem na urgente necessidade de libertação dos cereais retidos nos silos do sul da Ucrânia para acudir à fome que alastra em África, especialmente nos países do Corno de África, como a Somália, onde se estima que já tenham orrido perto de 300 mil pessoas devido à escassez de trigo, na Etiópia, no Quénia, ou ainda no Sudão, no Níger ou no Chade, mas com impacto severo na segurança alimentar de todo o continente, sendo ainda periclitante a situação em países asiáticos como o Sri Lanka, Indonésia, Bangladesh, entre outros.

Com este acordo, que ficou definido na quinta-feira, previsto para durar quatro meses e contar com os portos turcos para inspecções minuciosas às cargas dos navios, e é assinado esta sexta-feira, em Istambul, na Turquia, a cidade que serve de fronteira cultura e geográfica entre a Europa e a Ásia, separada pelo Rio Bósforo, na entrada do Mar Negro, onde agora vão surgir os corredores marítimos para uso das embarcações que rumem ao sul da Ucrânia para carregar os cereais que ali estão atolados nas contingências da guerra, vai para cinco meses.

Para trás devem ficar os argumentos de um lado e do outro para o protelamento desta solução, na qual Recep Erdogan e o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que deve deslocar-se à Turquia para assistir à assinatura do documento, tanto investiram do seu prestígio pessoal e institucional, nomeadamente a acusação de Kiev de que os russos estão a usar os cereais como arma contra o mundo, bloqueando, com a suapoderosa frota do Mar Negro, as exportações destas matérias-primas, ou da parte russa, de que a culpa é de Kiev, devido aos milhares de minas navais espalhadas neste mar interior ou as dúvidas alimentadas sobre a intenção dos ucranianos de usarem os navios de cereais para introduzirem armamento no país para usar na frente de batalha contra as forças do Kremlin.

Este importante acordo tem ainda como bónus o potencial de uso na aproximação entre as partes em conflito no muito que ainda falta discutir, desde logo um cessar-fogo antecedendo um acordo de paz, sendo o primeiro conseguido com sucesso envolvendo interesses da Rússia e da Ucrânia nos cinco meses de guerra.

E vai ser assinado ao início da tarde de hoje, perto das 15:00, hora de Luanda, 17:00 locais, no Palácio Dolmabahçe, em Istambul, a segundo cidade do país e o grande polo do milenar cosmopolitismo turco.

Istambul foi ainda palco, nos últimos dias, de complexas negociações onde estiveram delegações dos dois países compostas por elementos indicados pelos Presidentes Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, ambos conscientes da importância destas negociações para aquilo que vão ser os próximos passos de aproximação no contexto do conflito que, como ficou claro na quinta-feira, começa rapidamente a exaurir a paciência do resto do mundo, com o embaixador chinês nos EUA, Qin Gang, a exigir um rápido cessar-fogo e um abrangente acordo de paz que garanta a estabilidade futura na Europa e no mundo.

Entre os principais grãos retidos nos silos dos portos ucranianos estão o trigo, o milho e a cevada e ainda as sementes de girassol, num total aproximado de 20 milhões de toneladas, o que corresponde a quase 100% dos cereais exportados anualmente pela Ucrânia, que produz aproximadamente, por cada colheita, perto de 33 milhões de toneladas, sendo a produção mundial ligeiramente superior a 800 milhões de toneladas.

Uma das acusações de Moscovo, como lembrou recentemente o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, é que os países ocidentais, aliados da Ucrânia no conflito, desde logo EUA, Reino Unido e União Europeia, estão a exagerar a importância dos cereais ucranianos face à crise alimentar mundial, porque a sua produção, apesar de importante, está longe de ser decisiva, para atacar a Rússia que acusam "falsamente" de estar a bloquear os seus cereais.

Por exemplo, no top 10 dos maiores produtores de cereais, liderado pelos EUA, União Europeia e China, com Índia e Rússia nos primeiros 5 lugares, nem sequer aparece a Ucrânia, e no que diz respeito ao trigo, o principal alimento em vastas áreas do Médio Oriente e África Oriental e do Norte, a Ucrânia aparece apenas em 10º lugar, quando a Rússia é o 3º maior, logo a seguir à China e à Índia.

Sendo os cereais produzidos na Federação Russa (150 milhões de habitantes) substancialmente mais importantes, alias, as agências da ONU ligadas às emergências globais, têm sublinhado que os cereais russos são fundamentais para a segurança alimentar mundial, visto que se trata de um gigante da sua produção com uma necessidade interna muito inferior aos maiores produtores mundiais, como a China (1,4 mil milhões de habitantes), Índia (1,2 mil milhões) ou mesmo EUA, com cerca de 350 milhões de pessoas, com menor disponibilidade para os exportar.

Face a este cenário, e numa clara ofensiva diplomática junto dos países africanos, e numa clara antecipação à Cimeira EUA/África anunciada esta semana pelo Presidente norte-americano Joe Biden, para Dezembro, Sergei Lavrov veio dizer que Moscovo vai abrir a torneira totalmente para os "amigos africanos" em questões como os cereais, fertilizantes ou energia, bem como outras matérias-primas consideradas essenciais no continente africano e que a Rússia delas disponha, "apesar das dificuldades criadas pelos países ocidentais".

"Todos nós temos consciência da importância do fornecimento russo de bens de importância social, como os alimentos, para muitos países em todo o mundo e estamos cientes do papel que estes bens desempenham na preservação da estabilidade social", apontou Lavrov, citado pelos media russos.

Acrescentando, Lavrov, em entrevista à RT e ao site Sputnik, que, apesar de a União Europeia e os EUA insistirem que os alimentos e os fertilizantes russos não estão empacotados nas sanções aplicadas à Rússia com o evento da guerra, "a verdade é que impedem a sua exportação por inviabilizarem o processo ao negarem acesso aos seguros internacionais" no transporte e quando bloqueiam o acesso de navios russos aos seus portos.

Ainda num claro movimento de aproximação a África como antecipação à Cimeira dos EUA com o continente, prevista para 13 a 15 de Dezembro, em Washington, Lavrov sublinhou que "é essencial que os amigos africanos entendam que a Rússia vai continuar a cuprir, de boa fé, as suas obrigações de acordo com os contratos internacionais no que concerne à exportação de alimentos, fertilizantes e energia".

"A Rússia não impõe nada a ninguém ou diz aos outros como devem viver e entende que África deve encontrar as soluções africanas para os seus problemas, afastando-se das lógicas neo-coloniais ocidentais", acrescentou o chefe da diplomacia russa, noutro evidente remoque à iniciativa americana de aproximação a África, depois de décadas de abandono diplomático do continente que viu a China ganhar terreno em influência e negócios, bem como na área da cooperação multidisciplinar.

E a saúde de Putin, segundo a CIA...

... está melhor que nunca, como disse na quinta-feira o chefe da secreta norte-americana, William Burns, anunciando, num fórum sobre segurança, nos EUA, que se existe qualquer evidência sobre a saúde do chefe do Kremlin é que ele "tem saúde a mais".

Apesar da ironia de Burns, que afasta as narrativas que a própria CIA alimentou nos últimos meses sobre a morte iminente de Putin, seja devido a um cancro em avançado estado de gravidade, seja porque sofre de uma doença degenerativa severa, seja por outra maleita qualquer, estas afirmações do chefe da CIA mostram uma clara mudança de agulha na abordagem dos EUA à sua política para com a Federação Russa.

Isto, porque, como avançam alguns analistas, ao retirar a sombra da morte iminente de Putin, Burns está a dizer que os EUA e os seus aliados vão ter de lidar com o Presidente russo por muitos anos ainda e com ele em estado de híper-vigilância, o que indicia que, mais cedo ou mais tarde, terão de surgir conversações e a retoma da actividade diplomática normal, correspondendo isso a uma eventual diluição do interesse de Washington em alimentar por muito mais tempo o esforço de guerra de Kiev.

Outro elemento que remete para esta ilação é que o próprio William Burns veio, na mesma ocasião, desmanchar a narrativa dos aliados ocidentais e dos próprios EUA, sobre o número de mortes do lado das fileiras russas no conflito em curso no leste europeu, que, segundo Kiev ultrapassou já os 50 mil, que o Reino Unido diz serem mais de 40 mil, mas que a CIA admite não chegarem aos 15 mil, o que os analistas lêem também como um anuir à condição de maior capacidade militar de Moscovo que aquela que os países ocidentais dizem ser a realidade ao mesmo tempo que encharcam a Ucrânia de armamento sofisticado.

Isto, quando na frente do Médio Oriente...

... Vladimir Putin já está no terreno a diluir o efeito da deslocação do Presidente americano, Joe Biden, que esteve na Arábia Saudita na semana passada para tentar convencer RIade, o maior produtor e exportador de petróleo do mundo, a aumentar a produção de forma a reduzir os preços dos combustíveis, a grande dor de cabeça da Administração Biden, sem qualquer sucesso, porque os sauditas já vieram dizer não existirem razões para mexer na actual estratégia da OPEP+ para o sector petrolífero.

E foi a pretexto da reunião mensal mensal da OPEP+, a organização que desde 2017 junta os 13 membros da OPEP e 10 independentes encabeçados pela Rússia, para equilibrar os mercados face às sucessivas crises, que Putin se encontrou, por videoconferência, com o Príncipe saudita Mohammed bin Salman, tendo Riade e Moscovo feito saber que este encontro fortaleceu ainda mais as relações entre os dois países e os mais importantes membros da OPEP+, na qual os dois maiores produtores/exportadores não escondem uma confluência total de interesses, que vão contra, de forma evidente, os interesses dos EUA e dos seus aliados ocidentais, cujas economias se debatem com problemas de inflação historicamente severos, muito devido ao elevado preço da energia.

Recorde-se que o petróleo subiu nos mercados, desde o início da guerra na Ucrânia, a 24 de Fevereiro, de um valor médio de 60 a 70 USD para mais de 120 USD em média nas últimas semanas, enquanto o gás natural, essencial para a economia europeia e com a Rússia entre os três maiores produtores mundiais também, subiu cerca de cinco vezes o seu valor pré-conflito, estando agora a valer acima de 7 USD por MMBtu.

Com sauditas e russos, como aparentemente é o caso, a abraçar a estratégia desenhada já a meio de 2021, com paulatinas subidas da produção de forma a corresponder à saída da crise pandémica, estando actualmente perto dos 630 mil barris por dia mensalmente, as dificuldades de Joe Biden crescem dia após dia com o aproximar das eleições de meio mandato de Novembro e com as sondagens a indicar que os democratas vão ser castigados nas urnas essencialmente devido ao elevado custo de vida que resulta dos efeitos colaterais da guerra na Ucrânia que é essencialmente alimentada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus com o envio continuado de armamento e persistente apoio político ao Presidente Zelensky..

Sauditas, que são, ainda, a par de Isral, o grande aliado dos EUA no Médio Oriente, e russos vão ainda reforçar os laços comerciais e diplomáticos, segundo nota do Kremlin.

Novos objectivos

Entretanto, na frente de batalha, Sergei Lavrov disse em entrevista aos media russos que os objectivos de Moscovo nesta guerra vão agora além das repúblicas do Donbass, apontando, entre outros não especificados, as zonas de Kherson e de Zaporizhia, que, efectivamente, em parte já estão sob domínio das forças russas.

O governante russo explicou esta mudança de abrangência das intenções de Moscovo no mapa ucraniano com, em parte, o fornecimento, "por raiva gerada na impotência", de armas de maior alcance, como os HIMARS ou os Howitzers M777, ao lado ucraniano, o que obriga a mudanças estratégicas na condução dos combates.

Lavrov disse ser impossível às chefias militares russas deixar sob controlo ucraniano territórios com armas que podem alcançar directamente os territórios russos ou das repúblicas de Donetsk e Lugansk.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.