Os Estados Unidos vão a votos nas cíclicas eleições intercalares, que ocorrem sempre a meio do mandato de quatro anos, e onde em causa está a renovação completa da Câmara dos Representantes e um terço do Senado, as duas câmaras do Congresso, tendo esta votação quase sempre uma dimensão de plebiscito à Administração em funções, e este ano não vai ser diferente, excepto no que toca ao resto do mundo, porque nunca a votação de meio termo nos EUA se apresentou com tamanho potencial de alterar o curso da história do planeta.
Quando os mais de 160 milhões de norte-americanos qualificados para votar se dirigirem, na terça-feira, ou então quando já o fizeram por antecipação, às mesas de voto, dois factores vão estar alinhados para definir a escolha que vão fazer: a crise económica, com a inflação como vértice, e a guerra na Ucrânia, que é a razão que mais surge nos media como justificação para esta situação cuja gravidade se pode medir com o facto de há quatro décadas não ter acontecido um agravamento do custo de vida com esta dimensão.
Para já, as sondagens não são simpáticas para a Administração do Democrata Joe Biden, que não tem conseguido atacar a inflação e parece, segundo os analistas mais citados nos media do país, não estar nas boas graças dos eleitores devido ao apoio incondicional e desmedido à Ucrânia na guerra que trava há oito meses com a Federação Russa, para onde já desviou mais de 20 mil milhões de dólares de dinheiro público, em apoio financeiro e armamento, quando se sabe que é este conflito no leste europeu que, muito por causa do refluxo das sanções aplicadas pelos EUA e pela União Europeia a Moscovo, está na génese da elevada inflação em todo o mundo ocidental, sendo os norte-americanos dos que mais sofrem com os efeitos da escolha política de Joe Biden e dos seus dois "falcões de guerra" pousados na sua Administração, o secretário de Estado, Antony Blinken, e o secretário DA Defesa, Lloyd Austin.
Alias, a guerra na Ucrânia é uma das armas de arremesso que está a ser mais usada no combate político nos EUA, a maior potência económica e militar do mundo, onde o ex-Presidente Donald Trump, que já anunciou a sua "quase, quase" certa candidatura à Casa Branca em 2024, tem repetido à exaustão que com ele no comando não teria sequer havido guerra, para começar, e a economia não se teria degradado ao ponto em que se degradou sob a alçada de Joe Biden.
Mas, a mudança de agulha...
... que pode ser estratégica ou táctica, parece já estar a acontecer na Administração Biden, porque, se a notícia de Domingo daquele que é ainda um dos media mais prestigiados dos Estados Unidos, The Washington Post, estiver certa, a Casa Branca já fez chegar ao regime de Volodymyr Zelensky, em Kiev, o recado que pode mudar totalmente o curso deste conflito, ao aconselhar vivamente a Ucrânia a manter a porta aberta para futuras negociações com Moscovo que possam acabar com a guerra.
O que o Presidente Joe Biden pretende, de acordo com esta notícia, que pode ser o mais rude golpe na constelação de apoio político e militar a Zelensky, é que em Kiev se mantenha como possibilidade uma saída negociada para o conflito iniciado a 24 de Fevereiro com a invasão da Ucrânia pela Rússia, nomeadamente com a eliminação do decreto Presidencial que o Presidente ucraniano assinou há meses onde proíbe a ele mesmo de estar em quaisquer negociações com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, o que, sendo uma bizarria diplomático-política raramente ou nunca vista, elimina por completo todas as possibilidades de retoma de conversações, excepto, o que é altamente improvável, se o senhor do Kremlin saísse de cena por alguma razão que nenhum analista consegue perscrutar actualmente.
Face a este cenário, apesar de as eleições intercalares de amanhã, 08 de Novembro, serem para, directamente, eleger todos os 435 membros da Câmara dos Representantes, e 30 dos 100 membros do Senado, as duas câmaras do Congresso, alem de 36 governadores e centenas de presidentes de municípios, bem como alterações legislativas importantes em diversos estados, como as relativas ao aborto, na Califórnia, Michigan ou Montana, a principal questão por responder é: até onde se vai manifestar a frustração dos eleitores norte-americanos no esperado castigo, segundo as sondagens, a Joe Biden?
De acordo com o antigo Presidente Barack Obama, que está em campanha ao lado do Presidente Biden e seu ex-Vice-Presidente, para dificultar ao máximo o regresso de Donald Trump à Casa Branca, o risco de uma derrota estrondosa dos Democratas é grande, e a sua opinião encaixa perfeitamente na opinião manifestada pela maioria dos eleitores ouvidos nos múltiplos estudos de opinião realizados nas últimas semanas.
E Joe Biden, que também já veio a público admitir, apesar dos seus 80 anos, que pretende voltar a concorrer para um segundo mandato - Trump não é muito mais novo, tem 76 - o que a acontecer, será a disputa eleitoral entre os candidatos mais velhos de sempre na História da democracia norte-americana, está claramente a combater na rua a possibilidade de uma derrota que teria duas dimensões importantes, a alteração na correlação de forças, onde o poder do Presidente seria brutalmente reduzido pelo Congresso, obrigando-o a governar por decreto, devido à já anunciada recusa dos Republicanos em manter a farra gastadora com a política externa quando o país está encurralado na sua mais grave crise económica em muitos anos e, não menos sonora, a redução das hipóteses de uma reeleição, porque a conjugação de uma eventual derrota estrondosa com a sua avançada idade, levá-lo-ia a ter de reanalisar os seus projectos políticos pessoas, ao que se juntaria uma inevitável pressão interna no Partido Democrata para uma saída airosa justificada com problemas de saúde ou outros.
E a questão da guerra na Ucrânia está sempre à espreita para ganhar mais e mais protagonismo como factor decisivo nas decisões eleitorais até 2024, ano das eleições gerais nos EUA, porque as sanções gigantescas - nunca vistas - do ocidente à Rússia, que é um dos três maiores produtores de petróleo e gás natural, além de estar entre os maiores produtores/exportadores de outros recursos naturais estratégicos, tiveram como efeito de refluxo, tanto na Europa como nos EUA, um aumento flamejante do preço dos combustíveis e dos alimentos, que arrastaram tudo o resto, levando a recordes de décadas nos números da inflação e às recessões esperadas ainda este ano em vários países europeus e nos Estados Unidos, o que acabará por levar ao aumento exponencial do desemprego e aos cada vez mais ruidosos protestos populares.
Para reverter este quadro, alguns analistas apontam como inevitável que Joe Biden reconheça a insustentabilidade de continuar a alimentar o conflito no leste europeu, porque isso tem o potencial de hipotecar a sua recandidatura ao cargo e colocar no fio da navalha uma eventual vitória Democrata, seja com ele, seja com outro candidato, o que as mais recentes notícias confirmam, entre estas a do Washington Post, sobre a Casa Branca estar a pressionar Kiev para negociar com Moscovo, e a mais recente, de que Washington e Moscovo têm, afinal, mantido conversações secretas há largos meses, de forma a garantir que não ocorrerá uma escalada para o patamar nuclear nesta guerra, mas que, como sempre sucede, as conversas nunca se limitam a um tema único.
Para já, como sublinha o The Guardian, posição que é, alias, maioritária, entre os editoriais dos maiores media ocidentais, o vigor eleitoral está claramente mais do lado dos Republicanos, ao estarem a conseguir capitalizar a tremenda frustração e revolta do eleitorado norte-americano, ao ponto de as sondagens dizerem já ser inevitável a perda da maioria entre os 435 Representantes e existir uma fortíssima possibilidade de os 30 lugares no Senado em disputa serem suficientes - para isso basta que um Senador mude de campo - para acabar com o domínio democrata nesta câmara do Congresso.
Mas, apesar de ser visto como terreno difícil, não está posta de lado a possibilidade de os Democratas não só manterem o Senado na mão, possibilidade mais forte, mas também aguentarem a maioria na câmara dos Representantes, possibilidade muito menos óbvia, o que daria um ímpeto renovado às políticas estruturais dos Democratas de Joe Biden, desde logo a questão ucraniana - que está claramente na corda bamba - mas também na política externa além da Ucrânia, como a crise persistente Taiwan/China, onde Biden optou claramente pela linha dura com Pequim.
E também na dimensão interna, onde a questão do aborto, que o Tribunal Supremo abalou um status quo liberal de décadas, recriminalizando esta prática no todo nacional depois de Donald Trump garantir neste órgão federal uma maioria de juizes conservadores, ou ainda a questão do uso anárquico de armas entre civis, a razão principal dos repetidos tiroteios onde morem centenas de pessoas todos os anos.
Estas são, porém, eleições relativamente atípicas, porque sendo normal os eleitores aproveitarem estas eleições de meio termo para pressionarem as administrações no activo, votando na oposição, desta feita o "castigo" pode ganhar dimensão de punição exemplar face ao pântano económico em que os UA se encontram e ainda porque uma boa parte desse problema é resultado directo, e assim percepcionado pelos eleitores, de opções políticas de Biden, Blinken, Austin e companhia, como é o caso do tiro que sai pela culatra no caso da guerra na Ucrânia.
Não esquecer, no entanto, que as sondagens têm sido uma das vítimas mais notáveis destes novos tempos, com erros de palmatória um pouco por todo o mundo, e os EUA não têm sido excepção.