Esta Cimeira de Luanda, embora ainda sem data marcada, foi anunciada pelos serviços da Presidência angolana após uma visita, com carácter urgente, ao Palácio da Cidade Alta, na terça-feira, que durou poucas horas, do Chefe de Estado congolês para analisar a crise RDC-Ruanda, que ameaça desestabilizar ainda mais o já de si complexo xadrez dos Grandes Lagos.
Enquanto presidente da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), João Lourenço, que reforça a sua influência enquanto "pacificador" com o cognome de "Campeão para a paz e reconciliação em África" que lhe foi atribuído pela União Africana, na Cimeira de Malabo, conseguiu já o primeiro passo para arrefecer os ânimos na fronteira entre o Ruanda e o leste da RDC, com a libertação de dois soldados ruandeses da Guarda de Fronteira, capturados pelas Forças Armadas da RDC (FARDC) quando faziam o patrulhamento da linha de divisão territorial.
E se a RDC acusa o Ruanda de apoiar e acoitar os rebeldes do Movimento 23 de Março, este país acusa os congoleses de trespassarem sem autorização as suas fronteiras, inclusive com tiros de artilharia, alegadamente para posições ocupadas pelos rebeldes.
Para já, entre segunda e terça-feira, as ruas de Kinshasa foram parcialmente ocupadas por milhares de manifestantes anti-Ruanda, com slogans abrasivos para o país vizinho, exigindo respostas duras por parte do Presidente Tshisekedi, o que vem acrescentar em protestos de rua ao que já sucede no Kivu Norte, onde, em cidades como Goma, também estão a ocorrer protestos contra o M23 e os seus "apoiantes" do lado por causa da permanente violência na região.
RwandAir em aterragem forçada
Uma das medidas que mais fez temer uma escalada para violência aberta aconteceu no passado Sábado, quando o Governo de Felix Tshisekedi encrrou o espaço aéreo congolês à companhia aérea de bandeira ruandesa, a RwandAir, o que, em termos diplomáticos, é um dos passos de maior animosidade, tendo ainda chamado de urgência o embaixador em Kinshasa para esclarecimentos, outra demonstração de impaciência diplomática da parte congolesa.
Esta deslocação de Tshisekedi ao Palácio da Cidade Alta, anunciada à última da hora, aconteceu depois de a liderança rotativa senegalesa da União Africana, pelo Presidente Macky Sall, que esteve em Luanda na passada semana, ter colocado os líderes ruandês e congolês a dialogar para evitar uma escalada que poderá desestabilizar a já de si instável situação neste xadrez regional que são os Grandes Lagos.
Sall elogiou os dois líderes pela franca conversa que com eles manteve e pelo seu empenho na procura de uma saída pacífica para o problema, mas não foi anunciado qual o passo seguinte, nem se ficou definido o quadro de um eventual acordo para acabar com as hostilidades, quando o momento é de clara ruptura diplomática.
Agora, com este encontro com João Lourenço em Luanda, e com o anúncio oficial de que o Palácio da Cidade Alta receberá igualmente nos próximos dias os Presidentes do Ruanda, Paul Kagame, e da RDC, Felix Tshisekedi, ficará fechado o ciclo de contactos com os líderes regional, da CIRGL, e pan-africano, da União Africana, quando a situação na fronteira entre a RDC e ao Ruanda é já um dos pontos mais escaldantes em todo o continente africano pelo que representa se evoluir para um conflito aberto.
Terreno difícil
Para já, depois de cerca de dois meses de intensos combates entre o M23 e as FARDC, apoiadas pelas unidades de combate da MONUSCO, a missão da ONU na RDC, cuja definição é de apoio à paz e ao combate militarizado aos grupos de guerrilha, embora tenha ainda sido pedida a intervenção do Mecanismo Conjunto de Verificação Alargado (MCVA), criado em 2012 para responder rapidamente a situações de dificuldade de comunicação com potencial de conflito entre membros da CIRGL, que tem como líder, no momento, o coronel José Rui Miranda, das FAA, toda a atenção fica agora centrada no papel de João Lourenço para desatar mais este nó na teia apertada da difícil estabilidade nos Grandes Lagos.
E, depois de receber Tshisekedi, Lourenço esteve, segundo os serviços de comunicação da Presidência, a conversar, por videoconferência, com o seu homólogo ruandês, abordando a mesma questão, tendo esta dupla comunicação do "Pacificador" permitido garantir uma Cimeira com os dois lideres desavindos em Luanda, com data a anunciar, mas com o objectivo único de "ajudar, de forma consistente, a promover o desanuviamento da tensão actualmente reinante na fronteira entre os dois países e contribuir assim para o reforço da paz na sub-região".
Media demonstram nervosismo de Kinshasa e de KIgali
A RDC acusa directamente o Ruanda de estar a apoiar o M23 de diversas formas, nomeadamente dando guarida aos rebeldes no seu território, onde organizam investidas sobre o território do Kivu Norte, atacando aldeias e aquartelamentos das FARDC/ONU.
Nestes últimos dias tudo parece estar a desmoronar-se e a tensão a subir, facto que é visível na imprensa dos dois países, com títulos agressivos, especialmente do lado congolês, podendo ler-se, na síntese dos media feita pela Radio Okapi, suportada pelas Nações Unidas.
O jornal congolês "Le Potentiel" diz que "às máscaras caíram na linha da frente", referindo-se ao Ruanda, referido como o "grande inimigo da paz", enquanto "La prospérité", seguindo a mesma visão anuncia "medidas draconianas" para restabelecer a paz no leste da RDC e "garantir a soberania territorial" e o "L"Avenir" sublinha que a RDC e o Uganda, "apesar do problema entre a RDC e o Ruanda", mantiveram sem alterações a abertura de um Fórum Económico em Kinshasa, sublinhando as boas relações entre Kinshasa e Kampala, destacando que o Presidente Felix Tshisekedi "aposta na promoção da paz" e não na aceleração de conflitos entre vizinhos.
Já no Ruanda, o The New Times noticia a libertação de dois soldados ruandeses pelas FARDC e, em manchete, diz que as autoridades nacionais estão a "Alertar para o perigo do discurso de ódio" quando a tensão entre os dois países está ao rubro.
Já o News Now avança que o ministro dos Negócios Estrangeiros ruandês, Vincent Biruta, defende o direito de Kigali responder aos avanços de Kinshasa e de #defender a segurança do país" acima de tudo.
"Se os ataques continuarem, o Ruanda tem o direito de responder", sublinha o chefe da diplomacia ruandesa.
Apesar de ser evidente o mal-estar, os media ruandeses mostram maior contenção no noticiário sobre esta crise face ao que sucede em Kinshasa, onde, por exemplo, já esta quarta-feira, o Congo Nouveau titula, desafiadoramente, que Tshisekedi "não sabe o que fazer face à agressão ruandesa".
Este jornal vai ainda mais longe e nota que depois da acção sobre a companhia aérea ruandesa e de ter mandado o ministro dos Negócios Estrangeiros chamar o embaixador ruandês, o Presidente não "tem cartas na mão para ir mais longe" deixando como aviso à navegação que a "opinião pública congolesa está farta e exige que seja posto termo à aventura ruandesa".
Novo apelo da ONU
Entretanto, com esta crescente tensão, a ONU, através do seu enviado especial para a região dos Grandes Lagos, o chinês Huang Xia, lançou um veemente apelo a todos os grupos armados que actual na RDC a deporem as armas "imediatamente".
Quando se dirigia, na terça-feira, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas a propósito desta crise entre a RDC e o Ruanda, Huang Xia disse que os grupos armados, milícias e guerrilheiros, devem escolher a via do diálogo proporcionada pela plataforma criada pelo Quénia, denominada Processo de Nairobi, que visa resolver a prolongada convulsão armada no leste do Congo.
"Apelo a todos os grupos armados presentes no leste da RDC a renunciarem à violência e a entregarem imediatamente as armas, entrando sem estados de alma no processo de diálogo de Nairobi", disse Huang Xia.
Sobre o M23, grupo que está agora em questão mais que todos os ouros, Xia notou que estes, há 10 anos, ganharam visibilidade ao gerar forte atrito regional, com ataques indistintos sobre populações indefesas e unidades militares locais, deixando claro que o mundo não pode deixar que esta história se repita agora.
A origem do problema
Recorde-se que, em pano de fundo, para este regresso de João Lourenço à condição de actor da estabilidade nos Grandes Lagos, está a tensão entre Kinshasa e Kigali onde o Governo congolês acusa o vizinho de apoiar e dar guarida ao temível M23 (Movimento 23 de Março), um movimento de guerrilha criado em 2012, que, mais que nunca nos últimos dois meses, mas que, desde a sua criação, tem mantido, com intervalos alargados por duras negociações, a ferro e fogo o Kivu Norte, a província fronteiriça com o Ruanda.
O M23 foi criado por elementos da minoria ruandesa Tutsi, no interior do leste do Congo. Recorde-se que o leste da RDC foi arrastado como continuação do conflito que se prolongou após o genocídio que em 1994 ceifou a vida a 800 mil tutsis à mão da maioria étnica Huto.
Entre as principais guerrilhas a actuar no leste da RDC estão ainda a FDLR (Frente Democrática de Libertação do Ruanda) e a de origem ugandesa (Aliança das Forças Democráticas), protagonistas maiores da desestabilização permanente desta já agreste região africana.
O que pretendem estas forças é um tema em permanente discussão, mas, além da origem, que foi a protecção das respectivas comunidades num contexto de guerra étnica fratricida, existe uma abundante teia de dados que apontam para a transformação destes grupos armados em forças de protecção de interesses na exploração ilegal de recursos abundantes na região, como, além dos diamantes, o cobalto e o coltão, minerais raros e fundamentais para as novas tecnologias e que, por exemplo, o Ruanda é exportador, no caso do coltão, sem que sejam conhecidas jazidas no seu subsolo.