A única verdade garantida sobre a guerra na Ucrânia, como em todas, é que ninguém diz a verdade toda e poucos sabem o que realmente se passa nos mais de mil quilómetros da linha da frente onde russos e ucranianos se vêem através das miras telescópicas das espingardas automáticas.
Há, porém, alguns dados relevantes que permitem perceber que algo de muito relevante se está a passar e que, provavelmente, é mais importante que aquilo que os media ocidentais e os russos se permitem descrever.
Esta notícia, trazida a público pelo jornal com o melhor acesso à Administração norte-americana e conhecido pelas boas fontes dentro do Pentágono (Ministério da Defesa dos EUA), revela que Washington está a reformular o formato da sua presença na Ucrânia.
Se não for para ludibriar os rssos, o que não seria a primeira vez, basta lembrar a mentira das armas de destruição em massa no Iraque, está em curso o abandono das posições da CIA no leste ucraniano, depois de expostas pela investigação do mais relevante jornal dos EUA.
Este curioso facto sucede ao mesmo tempo que em Washington está em curso uma reviravolta na estratégia face à Ucrânia, com o Congresso a travar o apoio a Kiev e a, agora mais que provável, vitória interna de Donald Trump nas primárias republicanas.
Trump surge assim na condição de favorito, segundo as sondagens, às eleições Presidenciais de 05 de Novembro, com uma das primeiras medidas prometidas, caso volte à Casa Branca, a ser acabar com as regalias de Kiev em Washington.
Tudo somado ao iminente colapso das posições ucranianas na frente de guerra por falta de armas, munições e incapacidade de recrutar novos militares, e com o avanço em aceleração das forças russas sobre o território ucraniano, vários analistas admitem a possibilidade de em Washington estar a ser desenhado formato da "retirada" deste conflito.
O que deixaria para os países da Europa Ocidental a tarefa de manter o apoio a Kiev de forma a impedir, como o afirmou o Presidente francês, Emmanuel Macron, nas suas polémicas declarações recentes, uma vitória da Rússia nesta guerra.
Mas sem os EUA empenhados no apoio, até o Presidente Volodymyr Zelensky veio a terreiro admitir que a Ucrânia não tem condições de resistir às forças russas, porque a Europa está longe de conseguir proceder a essa substituição com o volume necessário.
Ora, quando o som de fundo mais notado entre os analistas militares e diplomáticos é a urgência de negociações para evitar a fragmentação catastrófica da Ucrânia, eis que a China volta à carga e anuncia o envio do seu "buldózer diplomático" para desobstruir o caminho da paz dos obstáculos que ainda existem.
Li Hui é o envido especial do Presidente XI JInping para a Euro-Ásia, e antigo embaixador na Rússia e no Cazaquistão, além de vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, sendo considerado um dos pesos-pesados da diplomacia chinesa, e tem agora a missão de procurar no actual contexto uma saída que permita manter a face em Moscovo e em Kiev.
Para isso, Hui vai estar este fim-de-semana em Bruxelas, deslocando-se a seguir para a França, Alemanha, Polónia, Ucrânia e, depois, a Moscovo, tendo a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Mao Ning, anunciado que o seu objectivo é "construir uma solução" que permita às partes aceitar desistir das armas para dar uma oportunidade à política.
Depois de uma primeira abordagem ainda em 2022, e, já em 2023, ter insistido no plano de paz próprio, Pequim optou por uma retirada estratégica do campo de batalha diplomático, naturalmente, e como sempre faz, sem desistir mas a aguardar pela melhor oportunidade.
E essa pode estar agora a emergir:
- Primeiro, porque a Ucrânia tende a ganhar consciência de que pode ser se bom senso negociar agora perante a possibilidade de uma derrota estrondosa;
- Segundo, porque os EUA, embutidos nos seus problemas internos e eleitorais, estão de saída da Ucrânia, e a Europa não possui o nervo suficiente para assumir as gigantescas responsabilidades inerentes;
- Terceiro, porque Kiev sabe que a seguir ao cessar das hostilidades vai ser necessário reconstruir rapidamente o país e isso será mais garantido com a extraordinária capacidade chinesa para erguer cidades inteiras em tempo recorde.
Além disso, Li Hui leva na mala para a Europa um trunfo que pode ser de relevância inigualável, que é o facto de ser a grande potência global que se manteve, relativamente, equidistante, sem esconder as relações especiais com Moscovo na economia, neste conflito.
Soma ainda a isso o facto de manter uma capacidade única de pressionar o Presidente russo para flexibilizar as suas posições, visto que se a economia russa resistiu por cima às sanções ocidentais, à China o deve, como Putin entende melhor que ninguém.
E há mais: Pequim não voltaria a assumir uma responsabilidade deste calibre se não estivesse, mesmo que comedidamente, em comunicação directa com Washington, a quem interessa também trazer a China para este caos no leste europeu de forma a afastá-la circunstancialmente de Moscovo.
Isso mesmo está inscrito nas declarações de Mao Ning, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, a anunciar a deslocação de Li Hui, afirmando que a China tem mantido contactos subtis com as partes, "incluindo Ucrânia e Rússia", o que deixa evidente que também o tem feito com os EUA, a outra "parte" envolvida.
Uma das propostas que pode surgir, para ajudar a empurrar para cima da mesa a saída para este conflito, mesmo que não seja o essencial, é que Moscovo pode abrir mão, de forma pouco exposta e fora do quadro oficial, dos mais de 350 mil milhões USD congelados pelos países ocidentais após a invasão.
Esta quantia gigantesca de dinheiro poderia servir para a reconstrução da Ucrânia, actualmente avaliada em mais de 400 mil milhões USD, mas tal só seria possível enquadrar neste contexto negocial se isso tivesse sido previamente definido por Putin e Xi Jinping.
Tal consubstanciaria algo parecido com a compra, indirecta, dos territórios anexados no leste ucraniano e na Crimeia, dos quais Moscovo não abdica, sendo algo que russos e norte-americanos conhecem bem, até porque o actual estado do Alasca foi comprado aos russos em 1867, por 7,2 milhões USD, o que equivaleria a 125 milhões em 2022.
Alias, a aquisição de partes de territórios de países soberanos por outros países soberanos tem um longo historial, envolvendo russos, norte-americanos, britânicos, franceses, espanhóis, suecos, dinamarqueses...
E a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, curiosamente, esta quarta-feira veio, de novo, falar sobre a possibilidade de usar os fundos congelados à Rússia para apoiar Kiev.
Alguns analistas defendem que se Zelensky não abdica da saída dos russos de todos os territórios ucranianos, e Putin não admite sequer essa possibilidade, isso leva à condição de beco sem saída para esta guerra que não seja a própria guerra.
Mas se as partes negociarem uma forma a definir de contrapartidas russas pelas regiões anexadas na Ucrânia, isso não seria, tecnicamente, uma conquista militar mas sim um negócio... e se há plataforma onde não existem impossibilidades, essa é a dos negócios.