Estas imposições de Washington a Kiev foram plasmadas num vasto documento que chegou, primeiro, no início desta semana, às redes sociais, como o Telegram, e depois aos media tradicionais, primeiro os russos, e depois na Europa do Oeste, embora poucos o tenham usado, até agora, para fazer notícia, sendo o espanhol El Pais uma das excepções no universo da imprensa ocidental.
E percebe-se porquê. É que as exigências norte-americanas, enunciadas num documento cuja existência já foi confirmada pela embaixada em Kiev, são de tal forma complexas e pesadas que o Governo de Zelensky terá de proceder a uma profunda remodelação do seu sistema judicial e mesmo político, especialmente o Ministério da Defesa, onde, recorde-se, têm sido detectados vários escândalos de corrupção que, inclusive, levaram à demissão de toda a anterior equipa ministerial.
O apoio norte-americano ao esforço de guerra e à economia depauperada da Ucrânia por 19 meses de guerra contra a invasão russa que começou a 24 de Fevereiro de 2022, com um longo rasto anterior de conflitos militares de baixa tensão no Donbass, e políticos, desde 1991, quando o país deixou a então URSS, e depois em 2014, com o golpe de Estado que afastou do poder o Presidente pró-russo Viktor Yanukovych, pode ser drasticamente afectado se a Ucrânia não cumprir com estas exigências.
Os norte-americanos parecem estar agora a reagir depois de um longo período sem reacção às acusações de um role sem fim de casos de corrupção no seio do Governo e administração ucraniana, com destaque para alegada venda de armamento ocidental no mercado ilegal internacional, desvios ao erário por governantes, compras de imóveis no estrangeiro...
Antes da guerra, a Ucrânia era considerado pelas organizações internacionais um dos países mais corruptos do mundo mas deixou de estar sob os holofotes devido à invasão russa, o que pode voltar a suceder com este documento corrosivo enviado por Washington ao Governo de Kiev.
O documento, que, segundo o El Pais, tem por título "Reformas ligadas às condições para a ajuda dos EUA", surge nos media quando o Congresso norte-americano se prepara para aprovar mais um pacote de 24 mil milhões USD, sob um manto nunca visto neste conflito de dificuldades enfrentadas pela Administração democrata de Joe Biden, geradas pelas exigências de garantia de transparência e prestação de contas por Kiev impostas pela oposição republicana, já, claramente, num ambiente de pré-campanha eleitoral rumo às eleições de Novembro de 2024.
Entre as medidas "prioritárias" enunciadas no documento, embora a embaixada dos EUA em Kiev ter sublinhado que estão num formato de discussão com as autoridades ucranianas, estão a exigência de, no prazo de apenas três meses, a lei ser mudada para que os responsáveis políticos e dos sectores públicos sejam obrigados a informar qual o seu património, fortalecer os meios ao dispor do Procurador Especial para o Combate à Corrupção; entre as medidas de mais longo prazo, máximo de 18 meses, estão as reformas do sector judicial e a liberalização dos sectores do gás e da electricidade, entre outros.
No entanto, este documento está a ser analisado por vários especialistas como uma demonstração de que os EUA, bem como alguns dos aliados europeus, já atingiram um nível de saturação com a guerra na Ucrânia e as suas exigências, que estão a procurar criar mecanismos de redução desse mesmo apoio através deste tipo de "expedientes".
Isso, porque, por exemplo, nos EUA, o Presidente Joe Biden começa a perder fortemente fôlego eleitoral nas sondagens, com a economia em pano de fundo para esse cenário negativo nas expectativas do democrata se reeleger em 2024; estando a guerra subjacente a este contexto difícil.
Enquanto na Europa, alguns países, com um longo ciclo eleitoral pela frente, sejam nacionais, regionais ou as europeias do próximo ano, começam a sentir negativamente os efeitos do apoio volumoso a Kiev, desde logo na Alemanha, onde a extrema-direita está a crescer de forma vertiginosa nas sondagens e a conquistar eleições locais, na Eslováquia e na Polónia, dois dos maiores apoiantes da Ucrânia na Europa, as eleições, nas próximas semanas, ameaçam os governos em exercício, abrindo a porta à possível chegada ao poder de forças políticas menos disponíveis para atender às necessidades de Kiev.
E também nos media ocidentais é já visível essa "fadiga" do tema "guerra na Ucrânia", com alguns, como os norte-americanos The New York Times, The Washington Post ou a Associated Press, a mudarem claramente as opções editorais, estando agora a expor claramente as fragilidades ucranianas, seja no âmbito do conflito, seja na denúncia de casos de má governação em Kiev.
Isto, quando, no campo de batalha, a contra-ofensiva ucraniana, iniciada a 4 de Junho, há já mais de três meses e meio, está claramente num impasse, com volumosas perdas em armamento pesado e vidas humanas, sem avanços no terreno, e quando o Inverno está já a fazer-se sentir, com a chegada das primeiras chuvas, que transformam as terras em zonas pantanosas impossíveis de uso por parte das viaturas pesadas de combate.