Uma das mais pontiagudas questões que o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, leva de regresso a casa para resolver com urgência, é o inesperado mas real conflito de interesses entre a Ucrânia e a Polónia, o pais europeu mais empenhado, pelo menos até aqui, no envio de armas, dinheiro e na disponibilização do seu escudo diplomático a Kiev, por causa dos cereais ucranianos que os polacos não querem deixar atravessar as suas fronteiras.
Há meses que a Polónia, a Hungria, Roménia, a Bulgária e a Eslováquia impedem a entrada de cereais ucranianos por causa da concorrência com as suas produções internas, agudizada com a redução quase total de taxas sobre os grãos exportados por Kiev, o que levou os agricultores destes países do leste europeu a revoltarem-se.
As medidas drásticas assumidas por estes países, com dificuldades em lidar com a revolta dos seus agricultores, resultam das dificuldades ucranianas em escoar a sua gigantesca produção de cereais depois do fim do acordo do Mar Negro, por iniciativa da Rússia, que desde Julho de 2002, quando foi assinado, esperou, em vão, que a parte do acordado, que a beneficiava na exportação do seus alimentos e fertilizantes, fosse implementada.
O fecho destas fronteiras, que eram, de facto, a alternativa para o corredor do Mar Negro, para que os cereais ucranianos chegassem ao resto do mundo, levou o Presidente Zelensky a avançar com queixas em tribunal e na Organização Mundial do Comércio (OMC), ao mesmo tempo que acusava "estes países" de terem duas caras e de estarem a falhar na solidariedade com a Ucrânia, que trava uma guerra há 18 meses com a Rússia.
Claramente irritado com a postura e as palavras de Zelensky, o primeiro.ministro da Polónia, Mateusz Morawiecki (na foto com Zelensky), com mais vigor, mas também o Presidente Andrz Duda, retaliaram de imediato, avisaram, primeiro, que Kiev tinha de estar ciente das suas limitações, e, depois, já em Nova Iorque, o chefe do Executivo anunciou o fim do envio de armas para os ucranianos, o que é um último passo antes de um azedar irreversível das relações entre os dois países.
Todavia, o reposicionamento estratégico de Varsóvia, mesmo que usando esta disputa baseada em interesses económicos, não seria possível se o actual contexto global não fosse de clara perda para a Ucrânia,
Isso mesmo ficou claro durante os contactos de Volodymyr Zelensky em Nova Iorque e Washington, onde, por exemplo, o líder dos republicanos e líder da Câmara dos Representantes do Congresso dos EUA, Kevin McCarthy, ter dito publicamente que antes de o receber, queria que este prestasse contas aos mais de 113 mil milhões USD enviados por Washington para a Ucrânia.
Sinais sonoros e visuais
Outros sinais houve que apontam para uma diluição da importância atribuída à guerra na Ucrânia por parte dos até aqui aliados de primeira linha de Kiev, com o norte-americano Joe Biden a dar o primeiro exemplo, que, ao seu o segundo a discursar na AG, relegou o tema do conflito para o final da sua intervenção, sem acrescentar sequer nada de novo, e, timidamente, ainda assim, insistir de forma acelerada que os EUA vão continuar a apoiar Kiev, o que alguns analistas notam ter sido um rude golpe nas expectativas do líder ucraniano que foi possível notar no incómodo mostrado pelo olhar da bancada ucraniana, onde estava um Zelensky de fácies carregado.
Mas o pior estava para chegar às páginas dos sites e ecrãs de todo o mundo como uma bomba de fragmentação, com o primeiro.ministro da Polónia, Mateusz Morawiecki, a derreter uma boa parte do fulgor ucraniano, ao afirmar que o seu país vai deixar de enviar armas para Kiev, consolidar a sua própria capacidade defensiva.
Foi, porém, a metáfora usada pelo Presidente polaco Andrzej Duda, do "homem que se está a afogar", que fez resvalar em definitivo as relações entre Kiev e Varsóvia.
Andrzej Duda disse que os ucranianos são um perigo porque, como "um homem que se está a afogar", pode arrastar consigo para a morte quem o está a tentar salvar.
Esta situação não é só um mau momento entre os dois países, deixa como um pêndulo ameaçador sobre Kiev a pretensão histórica e nunca negada, mesmo que poucos a relembrem, excepto os mais nacionalistas entre os polacos, sobre os territórios mais ocidentais da Ucrânia, que no passado estavam integrados na Polónia e foram sendo anexados pelo vizinho durante vários conflitos e crises mais ou menos graves, especialmente na II Guerra Mundial, quando a Ucrânia integrava a então União Soviética, com Moscovo e os nazis de Hitler a dividirem entre si partes da Polónia, no âmbito do famoso Pacto Molotov-Ribbentrop, os então ministros dos Negócios Estrangeiros soviético e alemão.
E não são poucos nem irrelevantes os analistas que há muito admitem como possível que a Polónia aproveite esta situação de fragilidade ucraniana, que, na verdade, para isso muito contribuiu ao defender empenhadamente que Kiev se entranhasse mais e mais na guerra com os russos, para tomar os antigos territórios da chamada região Galicia-Volhynia, cuja principal cidade é Lviv, a escassos quilómetros da fronteira polaca, apontando igualmente que a concentração de forças russas e bielorrussas na fronteira sudoeste da Bielorrússia, visa, irónica mas efectivamente, "proteger" o ocidente ucraniano dos "apetites" polacos, romenos e húngaros, ou lituanos.
Sem o sucesso que esperava com esta deslocação a Nova Iorque, onde, apesar de tudo, o tema da guerra na Ucrânia foi amiúde mencionado nos discursos, mas mais pela forma como esta está a impactar negativamente na economia global e menos no ponto do apoio a Kiev no seu esforço bélico com Moscovo, o que em diplomacia refinada se traduz por um incentivo velado à negociação de paz, Zelensky manteve a coerência e foi mesmo ao Conselho de Segurança proferir frases que ninguém percebeu o objectivo, como dizer que os "terroristas russos" não têm o direito de possuir armas nucleares ou de manter o seu assento neste que é o mais relevante órgão da ONU.
Lavrov contra-ataca
A resposta russa chegou pela voz do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que representou em Nova Iorque o Presidente Putin, acusando, de novo, o ocidente e os EUA de usarem as Nações Unidas como a sua "ferramenta de mão contra todos aqueles que acham que não têm o direito de questionar ou atrapalham a estratégia de hegemonia global dos EUA e dos seus aliados".
Sergei Lavrov acusou mesmo os países ocidentais de não quererem olhar com honestidade para as origens do conflito na Ucrânia.
Depois de um longo périplo pelas razões que levaram à guerra na Ucrânia, como as ameaças aos russófilos e russófonos do leste ucraniano, o golpe de Estado que em 2014 derubou um Presidente em KIev com boas relações com Moscovo, a questão da entrada na NATO, e as razões históricas e culturais de Moscovo, Lavrov atirou contra a política de sanções do ocidente, sem referir as que estão a ser aplicadas actualmente à Rússia, mas sim às que sofrem muitos países em desenvolvimento, sendo os mais afectados Cuba, o Irão, a Síria, a Coreia do Norte ou os mais recentes no Sahel africano, como o Mali, o Burquina Faso e o Níger.
E com isto, onde pode ser encontrado o desvio que leve os contendores para o caminho da paz? Para já, em lado nenhum, se se tiver em conta que os ucranianos insistem que só será possível calar as armas depois da saída do último soldado russo dos seus territórios reconhecidos pela comunidade internacional, como confirma a Carta das Nações Unidas, sobre a inviolabilidade das fronteiras por terceiros, enquanto os russos insistem que as regiões anexadas, desde a Crimeia em 2014, às em 2022, Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia são agora tanto Federação Russa como Moscovo ou Vladivostok.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.