Vladimir Putin não desistiu da ideia de que a morte de mais de 130 pessoas, na sala de concertos do Crocus City Hall foi uma encomenda dos serviços secretos ucranianos chefiados por Kyrylo Budanov em coordenação com o Conselho Nacional de Segurança e Defesa, Oleksiy Danilov.
E a demonstração cabal de que no Kremlin mantém-se sólida a convicção de que o atentado terrorista foi protagonizado pelo Daesh "K" mas financiado e encomendado pelos ucranianos a partir da sua embaixada no Tadjiquistão foi o ataque cirúrgico nesta segunda-feira em Kiev.
Nesse ataque, que visou um dos edifícios da intelligentsia militar ucraniana, os russos usaram pela primeira vez os seus mísseis hipersónicos Zircon 3M22, que, segundo informação revelada por bloggers de guerra russos tinham como alvo Budanov e Danilov.
Ao contrário dos igualmente hipersónicos Khinzal, os misseis Zircon são disparados de plataformas em navios de guerra de superfície ou submarinos e não de aviões de guerra, MIG-31, o que não dá tempo para que sejam accionados os sistemas de alerta de ataque iminente.
Isto, porque o Zircon levaram menos de 5 minutos a percorrer os 700 kms entre a base de lançamento na Crimeia e Kiev, em voo hipersónico integral, enquanto os Khinzal permitem a detecção eventual com os 10 a 20 minutos de voo do MIG-31 antes de serem disparados.
O Kremlin queria liquidar alvos humanos específicos, como o antigo Presidente e actual vice-presidente do Conselho Nacional de Segurança, Dmitri Medvedev, já tinha avisado: "Vamos abater todos os responsáveis, directa e indirectamente por detrás do ataque em Moscovo".
Com receio de que Putin refaça a sua estratégia inicial de não visar os dirigentes de topo do regime ucraniano, incluindo o Presidente Zelensky, com os seus misseis hipersónicos de precisão, os líderes ocidentais investiram tudo na culpabilidade única do Daesh.
Da Casa Branca ao Presidente francês, todos os líderes ocidentais saíram a terreiro garantir que o ataque em Moscovo, que matou 182 pessoas e deixou mais de 120 feridos, destruiu um vasto auditório para concertos com cargas explosivas, foi unicamente de natureza terrorista.
Para frisar esse dado, numa estranha procura desenfreada para evitar a escalada no conflito na Ucrânia,e, admissivelmente, poupar a vida aos dirigentes ucranianos, Emmanuel Macron veio a público falar repetida e demoradamente de uma alegada ameaça em França de terrorismo jihadista igualmente do Daesh "K".
Para já, esse esforço parece estar a resultar, porque, nas primeiras palavras sobre as investigações em curso ao ataque de sexta-feira, um dos maiores em solo russo desde sempre, Putin afastou aquilo que parecia ser a ideia inicial de conotar Kiev com esta mortandade.
A Rússia tem estado, nestes dias, a lançar, através dos seus media e dos canais nas redes sociais, um vasto conjunto de dados, que alguns analistas ocidentais dizem sofrer de défice de veracidade, sobre incongruências da tese ocidental da autoria única do `estado islâmico".
Uma dessas pontas soltas são o dado histórico de que o Ramadão, o período sagrado do jejum muçulmano, que decorre, é um tempo vedado aos crentes para a violência, embora nem sempre o Daesh tenha cumprida essa premissa.
Outra, é que os combatentes deste grupo radical não se rendem sem lutar, como o fizeram os quatro naturais do Tadjiquistão detidos após o atentado, deixando que as imagens algemados e de olhos vendados corressem o mundo, humilhando o próprio Daesh no seu todo.
E ainda o facto de que estes mesmos quatro autores dos disparos no interior do Crocus City Hall terem fugido em direcção à fronteira da Ucrânia, embora o local da detenção, na região de Briansk, permita pensar igualmente que visavam chegar à Bielorrússia e não à Ucrânia.
Quanto às declarações de Putin, este deixou inequivocamente a ideia de que o seu foco está em determinar, pelas investigações, todos os elementos que tiveram um papel na organização e idealização deste ataque, especialmente quem o ordenou e financiou.
"Nós sabemos que foram radiais islâmicos que perpetraram o ataque, mas o que nos interessa é saber quem o ordenou", avisou o chefe do Kremlin, deixando perceber pelas suas palavras que uma eventual intenção de Kiev seria criar um clima de intimidação no sei do povo russo.
Vladimir Putin, nesta primeira abordagem ao tema na perspectiva dos resultados das investigações, notou ainda que "esta mortandade será apenas uma parte do conjunto de ataques realizados na Rússia pelo regime nazi de Kiev que está em guerra com a Rússia desde 2014".
Todavia, contra a narrativa definida pelo Kremlin está o facto de não ser fácil explicar quais os ganhos, a não ser a criação de um elemento de ansiedade social geral, que a Ucrânia, no contexto da guerra, poderia ter com um ataque do qual não reivindica autoria.
Alias, em Kiev, um dos dirigentes de topo do circulo central do regime, Mikhail Podoliak, conselheiro principal de Zelensky, veio negar cabalmente quaisquer ligações ao ataque e acusou o Kremlin de estar a querer usar esta situação para justificar uma escalada no conflito.
O que alguns analistas questionam é o que é que o regime de Kiev teme como escalada porque em situação de guerra aberta e total, como a Ucrânia diz ser o caso desde 24 de Fevereiro de 2022, e Moscovo já assumiu, os limites são escassos ou nulos e a escalada é autojustificada.
E sobre as posições assumidas pelos Estados Unidos e pela França, Putin, sobre os EUA, disse que em Washington estão a "tentar convencer toda a gente que não há traço de Kiev no ataque" mas, apontou, sem terem como justificar a sua "procura de fugir para a Ucrânia".
"Quem é que estava à espera deles na Ucrânia?", questionou Putin, lançando mais uma incandescente brasa para o braseiro desta tragédia.
Isto, num contexto em que os media russos, e os canais nas redes sociais e no YouTube pró-russos, não poupam esforços na construção de um link entre o ataque ao Crocus City Hall e Kiev.
Acusação aos EUA
Entretanto, pela voz de Maria Zhakarova, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Rússia vem lançar ainda mais dúvidas, questionando directamente a Casa Branca sobre que garantias têm sobre a autoria deste ataque: "Estais seguros de que foi o Daesh? Talvez seja bom pensarem melhor!".
No mesmo artigo de opinião pulicado num jornal russo onde Zhakarova fez estas acusações, disse também que em Washingto "a prioridade parece ser agora proteger as costas de Kiev espalhando a versão do bicho-papão do `estado islâmico"".
Há, porém, um pormenor que permite concluir que em Moscovo não se está a pensar em deixar cair esta questão da ligação de Kiev ao atentado, e a cobertura dos EUA ao assunto e a uma eventual proximidade maior que o até agora conhecido.
Que é o facto de a TASS, a agência de notícias oficial da Federação Russa, ter colocado próximo da notícia onde destaca as palavras de Zhakarova, uma peça datada de 13 de Fevereiro onde é dito, logo no destaque, que "os EUA estão a recrutar jihadistas para atacarem na Rússia".
A TASS coloca como fonte para esta severa acusação a Washington o SVR, os serviços de intelligentsia externa da Rússia, que garantem ter conseguido dados concretos do recrutamento por parte de militares norte-americanos de jihadistas do `estado islâmico" e da al quaeda para conduziream ataques terroristas na Rússia.
Todavia, segundo o SVR, citado pela TASS, esses recrutamentos e treinos estavam a ser conduzidos na Síria para ataques a instalações altamente guardadas, como missões diplomáticas estrangeiras, enviando "pequenos grupos" para território russo.
Num parágrafo desta notícia, datada de 13 de Fevereiro, a TASS, sempre citando o SVR, acrescenta que este serviço de intelligentsia está a prestar "uma especial atenção" aos indivíduos do Norte do Cáucaso e Ásia Central.
Ora, este dado tem especial relevância porque os detidos como suspeitos do ataque de sexta-feira, 22 de Março, no Crocus City All, são todos naturais do Tadjiquistão, um país da Ásia Central.
E, já depois das detenções, segundo o britânico The Guardian, o Presidente russo esteve ao telefone com o seu homólogo do Tadjiquistão, Emomali Rahmon, fazendo saber a seguir que as agências de segurança dos dois países estão a "trabalhar em conjunto" em operações antiterrorismo.