Cartum transformou-se, de repente, no passado Sábado, numa cidade caótica depois de as denominadas RSF, a sigla inglesa para forças de reacção rápida do Exército sudanês, lideradas pelo general Mohammed Dagalo, o vice-líder da junta militar que tomou o poder no golpe de Estado em 2021, e as forças leais ao general Abdel al-Burhan, o líder do Conselho Soberano, saíram para as ruas de armas na mão e dedo no gatilho.

Em questão, no lado visível deste conflito, está a luta directa pelo poder entre os dois mais importantes generais sudaneses, mas existe um lado invisível para o grande público que alguns analistas apontam como tendo sido a gasolina atirada para a fogueira, que é um acordo assinado entre o Governo de al-Burhan e a Rússia para a instalação de uma base naval na cidade de Port Sudan, no Mar Vermelho, que ainda está dependente da aprovação pelo Parlamento, o que só pode acontecer com a realização de eleições.

Recorde-se que o golpe de Estado de 2021 foi feito pelos autores do golpe militar que em 2019 retirou do poder, ao fim de 30 anos de ditadura feroz, Omar al-Bashir, que já tinha assumido a Presidência em 1989 através de um golpe de Estado, tendo, na altura, sido iniciado um período de transição de dois anos que deveria culminar com a realização de eleições livres.

Voltando ao lado visível das razões para este conflito, que já foi condenado pela generalidade da comunidade internacional, com o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, a exigir o baixar das armas imediato e o início de negociações que garantam uma paz duradoura, o general Dagalo acusa o seu actual opositor e anterior aliado de estar a criar entraves à inserção das suas RSF na estrutura orgânica do Exército sudanês.

A situação descrita por vários habitantes de Cartum ouvidos pelos media internacionais referem a existência de um clima de terror nas ruas, agravado com o facto de muitas pessoas terem de sair das suas casas e abrigos temporários porque ficaram sem comida e sem água, expondo-se às balas, sejam as perdidas, sejam as dirigidas a tudo quanto mexe nas ruas da capital sudanesa, mas também nas restantes cidades com alguma dimensão.

A exponenciar os problemas, os hospitais de Cartum, onde se centram os maiores e mais letais combates, incluindo com recurso à aviação de guerra e à artilharia pesada, estão já para lá do limite de recepção a feridos do conflito, sendo em todos eles o caos a norma, como refere a AFP.

No actual cenário, a situação pode ser resumida à luta feroz pelo poder entre os dois mais poderosos generais do Exército sudanês que em 2021 se puseram de acordo para interromper o processo de transição para a democracia após o derrube de al-Bashir, com um novo golpe de Estado, provavelmente agora em desacordo devido a interferências externas, sendo aceitável, segundo alguns observadores, que ambos estejam já a ser peões de um xadrez muito maior que o Sudão.

Com uma situação periclitante em permanência desde 2019, quando chegou ao fim o reinado absoluto de Omar al-Bashir, esta eclosão das hostilidades, que, segundo algumas fontes, já fez perto de 100 mortos e centenas de feridos, não é propriamente um cenário novo, nova é a razão que está por detrás dos combates ferozes que voltaram ao centro de Cartum, com a sede do Exército e as bases em redor da cidade, bem como o seu aeroporto internacional na mira das armas.

Com a comunidade internacional quase em uníssono a condenar esta vaga de violência mortífera na capital do Sudão, desde o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que pediu o fim das hostilidades "imediatamente" e o regresso às negociações, aos EUA e à Federação Russa, ou a China.

Mas foi o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, quem deu o mote para a possibilidade de haver algo de estranho por detrás deste refluxo trágico em Cartum, sublinhando a existência de interesses não revelados a fomentar a violência.

E a dúvida rapidamente chegou às colunas de opinião de vários media internacionais, porque há apenas dois meses, o Governo militar de Cartum e a Rússia concluíram a revisão dos termos do acordo para a criação de uma base militar naval no Mar Negro, que será a primeira que Moscovo ergue em África e uma das poucas em todo o mundo, foram da Federação Russa e de algumas das antigas repúblicas da ex-União Soviética.

Porém, este acordo ficou pendente na sua concretização da conclusão do período de transição e da efectivação de um Governo civil no Sudão bem como, segundo noticiou na altura, em meados de Fevereiro, a Associated Press, a instalação de um Parlamento que o deve ratificar.

Sobre a possibilidade da existência de forças exteriores na génese nesta sublevação das RSF, embora não existam quaisquer acusações formais, apenas indicações de que os Estados Unidos admitem a sua existência, como o afirmou o chefe da diplomacia em Washington, alguns dados são já conhecidos, como o facto de, ainda segundo a norte-americana Associated Press, quando Cartum e Moscovo definiram os termos do acordo para a base russa no Mar Vermelho, ficou contemplada a entrega de armas russas ao Exército sudanês e diverso equipamento para o país, além de bens alimentares, como cereais.

Nesse momento, a 11 de Fevereiro, também o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, comentou o assunto, admitindo a sua existência e sublinhando que este depende da ratificação do Governo sudanês, sem referir a questão da necessidade de tal ser feito por um Parlamento eleito, o que não existe no país desde o golpe de Estado de 2019, no seguimento do levantamento popular que conduziu a mais uma espécie de "Primavera Árabe", na qual caiu o ditador al-Bashir.

Face a este cenário, e quando se sabe que EUA, Rússia e a China se digladiam como não se via há dezenas de anos, desde o fim da Guerra Fria, em 1990, com a queda da URSS, pela conquista de influência e acesso aos recursos naturais do continente africano, com Washington num pressing intenso para recuperar o seu próprio espaço, perdido para a China, em especial, mas também para a Rússia, as dúvidas sobre a quem mais interessa reacender a instabilidade em Cartum amontoam-se.

Porém, há uma certeza que é sublinhada por alguns analistas, que é o facto de a Rússia erguer uma base naval no Mar Vermelho, na estratégica cidade de Porto Sudão, onde, segundo o documento existente, serão ancorados até quatro navios de guerra da Armada Russa, e até 300 militares, além de pessoal de apoio civil, não ser do agrado dos Estados Unidos.

A cidade de Porto Sudão, situada no extremo este do país, na costa do Mar Vermelho, com a cidade saudita portuária de Jeddah, que é a mais importante porta de entrada marítima nesta geografia da Arábia Saudita, do outro lado do estreito, ambas com posição estratégica neste muito relevante corredor marítimo para o comércio internacional de acesso ao Canal do Suez, que liga o Mar Vermelho e o Índico ao Mar Mediterrâneo, e, dai, ao Atlântico.

E uma base naval russa nesta região, se vier a ser erguida, como está previsto entre Moscovo e Cartum, ganha ainda maior preponderância estratégica com a aproximação entre sauditas e russos, e a igualmente relevante crescente erosão da qualidade das relações historicamente sólidas entre Riade e os Estados Unidos, o que deixa Washington sem pé nesta região estratégica do Mar Vermelho, depois de o reatar das relações entre o Irão e a Arábia Saudita, por intermediação chinesa, ter criado menor aderência também no estratégico Golfo Pérsico.

Mas, se as RSF de Mohammed Dagalo conseguirem tomar o poder no Conselho Soberano do Sudão, actualmente liderado por Abdel al-Burhan, com um eventual sucesso no golpe de Estado em curso, embora não exista informação em canal aberto sobre as intenções deste general nesse âmbito, pelo menos sabe-se que Moscovo terá de renegociar as condições, sendo que existe a forte possibilidade de nem sequer vir a acontecer o "sonho" russo de ter uma presença militar nesta região.

Quem são as RSF?

Este corpo especial do Exército, criado em 2013 para combater no Darfur às ordem de Bashir, sofreu algumas evoluções dramáticas e, com o golpe de 2019, e depois em 2021, ganhou forte preponderância no país, tendo sido encarregadas de limpar as ruas de protestos, dos muitos protestos que se seguiram, exigindo democracia, tendo um registo atroz no capítulo dos Direitos Humanos.

Nos últimos anos, como referem algumas instituições internacionais, sendo que a Human Rights Watch sublinha a violência com que actua e de forma impune, especialmente sobre a população indefesa, ganhou muito poder e é agora uma ferramenta que pode ser decisiva, às mãos do general Dagalo, um homem temido pela sua selvajaria, no Sudão.

As RSF beneficiaram fortemente de apoio ilimitado do Exército, a única estrutura do Estado com poder financeiro e organização social, para esmagar os opositores nas ruas, tendo aproveitado, ao mesmo tempo, para ganhar tracção para a conquista do poder, para onde estão agora a forçar o caminho, bem armados e, segundo alguns observadores, bem equipados militarmente, o que revela também que contam com forte apoio externo. Só não se sabe ainda de quem...