Há, na verdade, um exercício da política pela política, incorporado na ideia do poder pelo poder, às vezes às cegas, que chega a dar a sensação de não olhar para meios quando se quer atingir determinados fins; onde os órgãos de segurança e da ordem acabam por estar ao serviço do partido do poder que estabelece regras e dita a nota com que se deve entoar o mantra; um poder político que vezes sem conta deu brechas à devassidão no exercício governativo, penalizando o erário público, que saiu amplamente prejudicado sem que ninguém, criminalmente, tivesse sido responsabilizado pelas consequências dos actos cometidos.

Com efeito, nem mesmo a Lei da Probidade Pública e o alarde da tolerância zero decretada no calor pré-eleitoral de 2012 foram capazes de "partir os dentes" à corrupção e à gestão danosa. Resultado: Temos hoje um país irreconhecivelmente chamuscado, sem moral para olhar para as estatísticas que enchiam de orgulho as páginas dos jornais como a economia que mais crescia no mundo, que se deu inclusivamente ao luxo de gastar milhões e milhões de dólares na construção de estádios de futebol e pavilhões de basquetebol e hóquei e etc., etc., (nada contra, claro está!) e não se lembrou de que era necessário diversificar a economia. Mas isso são outros carnavais!

Voltemos à questão do conflito armado e ao legado para o país! Incomoda-nos solenemente perceber que a pouco menos de um ano e poucos meses da realização das eleições gerais se agigante, em tom perturbador e impune, a problemática da intolerância política, sem que politicamente alguém venha a assumir a responsabilidade de querer estancar o fenómeno, já que o Parlamento, órgão que devia ter esta preocupação de lidar com a forma como é materializado o exercício político-partidário, ignora soberanamente!

O que se assiste hoje um pouco por todo o país, com a conivência dos partidos políticos todos, sem excepção, é prova mais que evidente de que temos uma classe política acobardada, por um lado, que não aprendeu as lições da história do país, e, por outro, uma classe política intolerante, a quem não interessa impedir o surgimento de mais mortes, mesmo a seguir ao calar das armas que sempre estiveram, todas elas, apontadas para os civis indefesos. Senão vejamos:

Se há uma classe que devia pedir desculpas ao povo angolano esta classe é a política, e as razões são todas elas por ela e por nós sobejamente conhecidas. A chegada dos movimentos políticos a Angola após o 25 de Abril criou uma dissensão social com base em critérios que minaram a sã convivência no país, dividindo-nos como angolanos! Passamos a ser conhecidos por via da nossa origem tribal: os

Kimbundu ligados ao MPLA, os Ovimbundu à UNITA e os Bakongo à FNLA.

Estranhamente, desde 2011, quando começaram a ganhar corpo alguns movimentos cívicos, sobretudo alimentados por jovens conhecidos posteriormente por revus, o poder político - vendo-se a braços com o velho problema de lidar com o contraditório de forma aberta sem que este fosse necessariamente o do costume: o partidário - passou a defender-se com expressões como: "inimigos da paz" e passou a dividir os cidadãos entre "aqueles que querem de volta a guerra" e os que "amam" a paz.

Interessa-nos, por ora, só a expressão "inimigos da paz". Primeiro, é preciso lembrar aos políticos, especialmente os que sustentam o poder, que o povo angolano em momento algum declarou guerra a si mesmo. Esta guerra, anulada com o alcance da paz em 2002, serviu de pretexto para defender interesses de alguns que usaram inclusivamente as riquezas do país para a sustentarem, importando armas que dizimaram milhares de civis. Portanto, quando se diz que "o povo deseja a paz e está cansado da guerra" não deixa de ser caricato, porque o povo angolano como tal nunca disse que queria a guerra!

Tal como "a democracia nos foi imposta", a guerra também assim o foi. E os beneficiários dela estão todos aí bem visíveis/transparentes, porque, na verdade, tal como em outras partes do mundo, além de dizimar, as guerras geram riquezas, pelo que não estaríamos a incorrer em erro nenhum se afirmássemos que boa parte dos ricos angolanos o é precisamente como consequência dos ganhos que obteve ao longo de todo o conflito civil; com a venda de diamantes ou simplesmente pelo poder de influência que militarmente teve ou passou a ter!

Importa, pois, apenas lembrar que a responsabilidade de impedir que mais vidas sejam ceifadas é da classe política, que neste momento não se manifesta, e se o faz, fá-lo em defesa ou para acusar. É a classe política que não procura criar uma agenda com todos os partidos com e sem assento parlamentar para abordar este assunto que está a fazer novas ossadas num tempo que vergonhosamente chamam de Paz e de Reconciliação Nacional. Com que moral celebraremos, por exemplo, para o ano, o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional, se continuam a morrer cidadãos angolanos por usarem esta ou aquela camisola partidária?!