O meu sogro abriu-me a janela de uma sociedade colonial, em Luanda, que eu não conhecia. A dos que, estando profundamente imersos na afluente sociedade que então florescia, tinham preocupações nacionalistas e aspiravam à independência de Angola. Nomes como os Costas da SADIL - patronos, importantes e discretos, de tantos, brancos e negros, que precisavam de apoio para prosperar, incluindo ele, que passou de mecânico-assalariado para proprietário de um pequeno comércio, com a sua ajuda -, Felisberto Lemos, o homem da LELLO, Beto Van-Dúnen e Diógenes Boavida - personalidades ligadas ao nacionalismo angolano, futuros dirigentes - privaram com ele, num ambiente em que os riscos eram percebidos, e uma chamada à PIDE, felizmente sem consequências, serviu, que mais não fosse, para o confirmar.

O meu sogro, que vinha de raízes operárias, e em menino lia o jornal para o avô, que lho pedia, pois era analfabeto, obteve o diploma da 4.ª classe, ensino quase superior na empobrecida sociedade portuguesa dos seus dias de infância e juventude, e teve nas bibliotecas populares itinerantes que existiam na altura, a contracorrente da cultura de submissão que então se pregava, o néctar de que abundantemente se alimentou. Talvez não se vestindo tão a rigor como Maquiavel - como reza a estória do seu encontro diário com as mentes sábias do mundo do pensamento, durante o seu período de exílio -, o meu sogro leu tudo o que lhe era servido, onde predominavam os autores portugueses, como Redol e Aquilino, e os franceses, Balzac e, especialmente, Zola, que tão bem descreveu o mundo real do seu tempo, pintando a cores de cinzento e negro a vida do proletariado com que ele, naturalmente, se identificava.

Ajudando o pai, mestre-de-obras, o meu sogro chegou à idade militar e teve a sorte de ir para uma unidade onde tirou o curso de mecânico, passaporte para um futuro diferente do dos seus. Terminado o período militar, veio para Angola, e foi mecânico nas oficinas da Renault (Alfredo Matos) e VW-Mercedes (Guérin), o que lhe permitiu mandar vir a esposa - casada por procuração -, conceber a minha futura amada e comprar uma Vespa. Entretanto, o seu interesse virou-se para a electrónica. Espírito vivo e curioso, continuou com a sua obsessão de leitura - a sua biblioteca tinha mais de 5000 volumes quando morreu -, tirou um curso de electrónica por correspondência, e montou uma oficina de reparação de equipamentos em casa - com a minha sogra a ajudá-lo, fazendo-lhe companhia e passando as ferramentas -, montava auto-rádios, e ainda trabalhava como projeccionista nas salas de cinema da capital, Miramar e Avis. Homem de uma cultura renascentista, por tudo se interessava.

Conta a sua filha que, logo depois da independência, num passeio com a família, quando passavam perto de um dos bairros periféricos da nossa cidade, disse-lhes confiante: dentro de 10 anos nada disto existirá! Desfez-se do seu próspero comércio e empregou-se no Estado, onde chegou a ser um impoluto director da ABAMAT, empresa responsável pela importação de peças para o parque automóvel estatal.

O meu sogro morreu desiludido, porque o filme que ele imaginou para o futuro do país não se concretizou. Acabou por recuar nalgumas das suas decisões. Deixou o Estado e foi trabalhar para uma das empresas de construção portuguesas, e acabou mesmo por fazer renascer a sua antiga empresa e recuperar a nacionalidade portuguesa a que tinha renunciado.

Homem de princípios com as incoerências que todos os homens têm. Defendendo a emancipação feminina, chocou-me quando proibiu a filha, já universitária, de ir comigo um fim-de-semana ao Mussulo, enquanto namorávamos. Confrontei-o: mas então, Sr. Roque, e a emancipação? Respondeu-me: ah, isso é para as filhas dos outros. A minha segue as minhas regras enquanto viver sob o meu tecto!
Construiu uma família bem formada, preocupando-se com a igualdade e a justiça.