Na quarta-feira, o Presidente João Lourenço recebe, em Luanda, os seus homólogos do Ruanda, Paul Kagame, da RDC, Félix Tshisekedi, e do Burundi, Évariste Ndayishimiye, para analisar, mais uma vez, o contexto de violência no leste do Congo, onde há largos meses os guerrilheiros do Movimento 23 de Março (M23) devastam a região com acções violentas.
O problema em pano de fundo é que o Governo do Presidente Tshisekedi acredita que este grupo, que foi criado em 2012 e esteve adormecido até meados de 2021, está a actuar com a cobertura ruandesa e acusa o Governo de Paul Kagame de lhes dar apoio logístico e permitir o uso do seu território para refúgio.
Há meses que que os dois países trocam severas acusações de trespasse das linhas de fronteira, gerando ocasionais escaramuças entre os dois exércitos, mas é na actuação do M23 que o problema se agudiza, com Kinshasa a acusar Kigali de estar por detrás do renascimento deste grupo terrorista para gerar instabilidade no leste da RDC.
Este conflito, que, segundo relatos das agências e dos media com jornalistas no terreno, já provocou centenas de mortos e largos milhares de deslocados, está a colocar em risco a soberania congolesa no Kivu Norte e a capital desta importante província congolesa, devido a sua riqueza em recursos naturais, Goma, pode mesmo ser tomada pelas forças do M23 em pouco tempo.
Para evitar uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, e num contexto em que a sociedade civil congolesa está mergulhada em apelos radicais de acção militar contra o Ruanda, através de manifestações que envolvem centenas de milhares de jovens em várias cidades e regiões, visto como a força de onde saiu o M23 para mergulhar o leste do país no caos, a organização sub-regional Estados da África do Leste (EAC, na sigla em inglês) criou uma força militar de interposição.
Para já, esta força militar, com enquadramento legal para apoiar as Forças Armadas da RDC (FARDC) nas suas acções de combate ao M23, é composta por militares do Burundi, do Quénia e, agora, também do Uganda, devendo contra com mais de 2.500 elementos nos próximos dias, havendo possibilidade de alargar este contingente a outros países.
E no campo diplomático, estão no terreno dois mediadores reconhecidos pela União Africana, o antigo Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, em nome da EAC, e o Presidente angolano, João Lourenço, como líder da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL) e ainda na condição de Campeão para a Reconciliação e Paz em África, estatuto conferido pela União Africana, com ambas as partes a sublinharem que o seu trabalho é complementar.
Depois de a EAC ter agendado para Nairobi, esta egunda-feira, 21, uma nova ronda de conversações inter-congolesas, que acabou por não acontecer porque o Governo de Kinshasa se recusa a sentar-se à mesa com organizações guerrilheiras como o M23, é agora a vez de Luanda, onde deverá, na quarta-feira, 23, ter lugar a Cimeira RDC-Ruanda, com a presença dos respectivos Presidentes, Félix Tshisekedi, e Paul Kagame, com a presença dos Chefes de Estado angolano, João Lourenço, e do Burundi, Évariste Ndayishimiye, actual presidente da EAC, para dar contexto e solidez a qualquer decisão que venha a ser tomada.
Para que a Cimeira de Luanda, que não é a primeira vez que ocorre com a presença de Kagame e Tshisekedi, tenha sucesso, foi importante, segundo alguns analistas, a admissão por parte do Presidente ruandês de que iria exercer a sua influência junto do M23 para acabar com a sua acção violenta no Kivu Norte.
Nesta Cimeira de Luanda, onde vai ainda estar o mediador da EAC, Uhuru Kenyatta, o objectivo mínimo a alcançar para que seja um sucesso, é garantir um cessar-fogo imediato, o que obrigaria a que o M23 fosse contactado oficialmente para o efeito, impondo um dead line rígido e, garantir que, se o grupo terrorista não cumprir, a força de interposição regional seja reforçada, eventualmente com a participação de países fora da EAC, como Angola.
Este resultado é considerado essencial para evitar que a escalada em curso no conflito entre o M23, que alguns media congoleses dizem estar a ser integrado por militares profissionais ruandeses, com alguns media, como a tv francesa France24, a admitir que existe a possibilidade de a capital do Kivu Norte vir a ser tomada pelos guerrilheiros nos próximos dias.
Para isso é fundamental, segundo as análises feitas por especialistas, que Luanda se imponha, até porque conta com o apoio claro da comunidade internacional, como, de resto, o atestam as declarações nesse sentido do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, e o disse explicitamente o Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, aquando da sua visita à região há cerca de três meses.
A questão em cima da mesa a responder é, primeiro, o que opõe de facto os dois países, e como ultrapassar os diferendos. A primeira parte da questão é simples: a RDC acusa o Ruanda de apoiar o M23 na sua tarefa de desestabilizar o leste do país; e o Ruanda acusa a RDC de apoiar os guerrilheiros da Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) nas suas acções em território ruandês, como Kigali diz acontecer amiúde, sendo ainda conhecido que o M23 acusa KInshasa de estar a desrespeitar o acordo assinado em 2013, que garantia a integração social dos elementos do grupo que depusessem as armas.
Pelo meio existem ainda quezílias locais étnicas complexas de gerir, porque o xadrez cultural é vasto e atravessa fronteiras em quase toda a extensão da Região dos Grandes Lagos, onde pontificam países como o Ruanda, RDC, Burundi, Uganda, Quénia...
E em pano de fundo está o genocídio de 1994, no Ruanda, onde a maioria Hutu atacou selvaticamente a minoria Tutsi e os hutus moderados, matando mais de 800 mil pessoas, o que deu azo à criação de várias milícias locais de defesa das comunidades que rapidamente evoluíram para grupso de guerrilha organizados, como a FDLR ou as ADF (Aliança das Forças Democráticas), o grupo de cariz islâmico surgido na altura, no Uganda, e que hoje é um ramo do estado islâmico na região.
As razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, sobrepovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC