A HANDEKA é uma organização cívica a que quiseram dar um cariz politico, pois, no entendimento da ex-vice-ministra da Educação, "o trabalho desenvolvido desde há mais de 20 anos por um conjunto de organizações, como a ADRA, o Instituto Mosaiko, o Observatório Político e Social, entre outras - para além do desenvolvido pela academia, sobretudo pela Universidade Católica, não era tido em conta pelo Governo".
"Chegámos à conclusão de que há um manancial de informação sobre assuntos estruturantes para qualquer país, mas que o poder político não ouve", diz Alexandra Simeão. "As organizações esforçam-se, por vezes andam três anos a fazer um estudo sobre um assunto fundamental, não só apresentam um diagnóstico como apresentam soluções, e não são ouvidas", refere a ex-vice-ministra, em entrevista ao Novo Jornal Online, num especial dedicado à Educação, a poucos dias do Orçamento Geral do Estado ir a votação final na Assembleia Nacional.
NJOnline - Quais são os objectivos da HANDEKA?
AS - Queremos combater os 10 principais constrangimentos que inibem o exercício da cidadania. Porque Angola tem leis maravilhosas e para tudo, mas que não se reflectem na vida do cidadão. A lei diz que a educação é gratuita, por exemplo, mas isso não se concretiza.
NJOnline - E os dois principais inibidores, segundo a Alexandra e a HANDEKA, são o registo civil e a educação primária...
AS - O registo civil porque é absolutamente confrangedor perceber que provavelmente mais de metade da população não tem bilhete de identidade, não tem registo. E isso ficou visível, aquando das eleições, porque dos mais de nove milhões de eleitores, só pouco mais de três milhões fizeram o cartão de eleitor usando o bilhete de identidade, os outros recorreram à prova testemunhal. E quando falamos do registo civil não falamos dos constrangimentos que isto coloca na idade adulta, estamos a falar do que isto significa logo à nascença no que respeita à cidadania. A nossa constituição diz que toda a gente tem direito a um nome e a uma nacionalidade. Se eu não tenho este primeiro direito, não consigo ter os outros.
NJOnline - E isso pode resultar também em relatórios que não correspondem à realidade. Pelos números oficiais divulgados, dois milhões de crianças não conseguiram aceder ao ensino primário. Mas se grande parte das crianças não está registada, também não consta desse relatório. Mas qual é o caminho a seguir?
AS - A solução é fazer campanhas massivas de registo e o Governo já provou que isso é possível aquando das eleições, recorrendo à prova testemunhal. Aliás, o cartão de eleitor é uma presunção de nacionalidade porque a constituição diz que só pode votar quem é angolano. Então, se o Estado está a assumir que duas pessoas podem atestar que outra é angolana, está automaticamente a atribuir nacionalidade ao cidadão-eleitor. Qual é a diferença? Se os dados transmitidos oralmente servem para obter o cartão de eleitor, o Estado que os aproveite e faça logo o bilhete de identidade desse cidadão. Provavelmente resolvíamos logo o problema de milhões de pessoas. Porque assim os filhos também já poderiam ser registados. Um cidadão sem bilhete de identidade não pode abrir uma conta bancária, não pode casar-se, não pode nada. Não existe.
NJOnline - Apresentada uma solução, considerada viável pela HANDEKA, para a questão dos registos, foquemo-nos agora na Educação. Salienta muito a importância do ensino primário e, até, do ensino pré-primário.
AS - A esse nível batemos no fundo e é uma tremenda falta de sentido continuarmos a insistir numa coisa que é ineficaz. Porque, mesmo que o orçamento seja pequeno, são investidos milhões de dólares em salários, que depois não se repercutem em qualidade, pois a gestão é mal feita: os gestores não estão preparados, as escolas não são unidades orçamentadas, faz-se hoje uma escola e daqui a dois ou três anos parece que sofreu um bombardeamento.
NJOnline - Algumas são inauguradas mas nem chegam a funcionar.
AS - Porque não têm professores, há esse problema de não perceber que uma coisa tem de acompanhar a outra. Mas, infelizmente, a anterior governação do país, com José Eduardo dos Santos, foi míope e maldosa numa série de questões. Quando eu digo isto, digo com dor, porque as pessoas passaram a olhar para os sectores-chave da sociedade, nomeadamente a Saúde e a Educação, coisificando-os, como se Educação fosse uma escola e um professor. Não importava mais nada. E não pode. Uma escola não pode ser uma escola e um professor, não pode ser uma escola sem água, sem casa de banho. Como é que eu vou querer pôr as meninas na escola, por exemplo? Uma menina com 13 ou 14 anos, no tempo do período não pode ir à escola porque não tem casa de banho. Como é que podemos dizer que estamos a trabalhar para a igualdade de género e estamos preocupados com a integração das meninas na escola? São pormenores que podem alterar toda a perspectiva de integração das meninas na escola.
NJOnline - Quais são os grandes desafios da Educação em Angola?
O sector da Educação enfrenta dois grandes desafios. O primeiro, é o desafio da qualidade que deve ter como objectivo o sucesso educativo dos alunos, para que possam desenvolver competências técnicas, éticas e práticas. Deve ser avaliada a necessidade de a Escola ser capaz de proteger e educar as crianças para que se possam proteger no ambiente em que vivem. Na análise destes desafios é importante referir que o actual modelo educativo em Angola não cumpre o compromisso com a cidadania, nem salvaguarda as melhores práticas de sobrevivência infantil. E a escola não é usada para criar cidadãos capazes de absorver as boas práticas de governação, democracia, ética e de participação cidadã. Práticas que de forma concreta devem fazer parte da aprendizagem na Escola Primária e que se traduziriam em integridade na vida adulta.
É, igualmente, urgente fazer uma avaliação rigorosa sobre a pertinência das prioridades e opções provinciais em matéria de construção de escolas: relação custo/benefício da sua qualidade, serviços sociais cuja importância é determinante para a melhoria da qualidade de vida dos alunos, a exemplo do programa de Merenda Escolar que deve ser considerado o mais importante instrumento de combate ao insucesso escolar e ao abandono escolar precoce. De igual forma importa aferir às boas práticas que por certo existem, mas não constituem a regra.
Por isso é também importante que se universalize o programa de Merenda Escolar e que este programa seja acompanhado por uma Comissão Nacional de peritos em nutrição, saúde entre outros técnicos.
NJOnline - Mas voltando à governação anterior, pois foi com ela que chegámos aqui.
AS - A governação de José Eduardo dos Santos foi uma governação sem amor, uma governação que desprezou, e isso contagiou os seus subordinados e até o povo.
A questão da corrupção. A maldade é uma coisa que se torna geométrica, tal como a bondade. Se nós tivermos exemplos de maldade constantes, não precisamos que alguém nos bata, que alguém nos ofenda... A maldade pode ser subtil. Viver num bairro, sem água, sem luz, com fome, rodeado de lixo, de doença, ter perdido três filhos. É uma maldade que se instalou na vida das pessoas, e que vai ser hereditária. E as pessoas acabam por ser afectadas por essa situação que é imposta, e depois continuam esse ciclo por sobrevivência.
NJOnline - Até deixar de haver valores?
AS - Exacto, e também por isso a importância do pré-escolar e do ensino primário. A educação na primeira infância é fundamental, sobretudo aquela dos três aos seis anos. A criança começa a perceber as cores, as formas, a interagir, numa idade em que o seu cérebro absorve completamente o que aprende.
NJOnline - É também muito recíproca, porque o que as crianças aprendem nessas idades, levam para casa, e acabam por ensinar os pais, levam o conhecimento para casa.
AS - Sim, e é por isso que não é só o edifício que nos preocupa. Naturalmente que tem de ser confortável, não podemos ter um deputado naquele luxo faraónico e o professor e o aluno naquela miséria franciscana, em que até têm de defecar ao ar livre. Mas a nossa preocupação vai para além disso, vai para a ineficácia do curriculum, por exemplo. E não estou a referir-me às disciplinas convencionais, é óbvio que têm de apreender Português, Matemática, História... Mas será que as crianças têm de aprender de forma enciclopédica? Ou, em países como este, não faria todo o sentido aprender, na escola, técnicas de sobrevivência? Transformar a criança em cidadão aos seis anos, a começar desde cedo a aprender a boa governação. Porque é esta criança que um dia vai ser ministro, é este cidadão que vai ser um professor corrupto, ou um enfermeiro que vai vender os medicamentos. Se na escola o professor mostrar a água não potável ao microscópio e a criança vir os bichinhos, nunca mais vai querer beber essa água. A mãe vai ser obrigada a ferver a água, e mesmo que não fique 100% boa, estará 50%, e nós diminuímos a segunda causa de mortalidade infantil, que são as diarreias agudas, devido à água imprópria. Portanto, se pusermos uma criança na escola, estamos a educar também a família. Ensinar a importância de lavar as mãos, de uma boa alimentação, de fazer hortas nas escolas, ensinar porque é que não devem brincar no lixo, no fundo procurar salvaguardar a criança do meio hostil em que vive. E isso não é ir lá fazer uma palestra, em datas alusivas. Isto teria de ter a mesma importância da Matemática e era ensinado da mesma forma que aprendemos a tabuada. Assim, em vez de transformarmos uma pessoa em cidadão quando lhe damos um bilhete de identidade ou um cartão de eleitor, estávamos a formar um cidadão desde tenra idade. Porque a ética não se cola, não se introduz por decreto.
Se eu fosse o João Lourenço, não me limitaria a fazer uma auditoria à dívida pública, faria uma auditoria ao país. E no caso da Educação, era mesmo desligar o sistema e fazer uma coisa nova. Nós não podemos olhar para a Educação como apenas uma escola onde se deixam os miúdos para aprenderem Português ou Matemática, e depois falta-lhes todo o conteúdo ético que eles também não têm em casa. E esta questão da ética é fundamental num país como o nosso, que está completamente desestruturado.
NJOnline - Na sua opinião não houve esse esforço depois da guerra?
AS - Não houve, porque depois que a guerra acabou, a governação embebedou-se com a riqueza. E mesmo a população ficou tão eufórica, primeiro porque acabou a guerra e depois porque imediatamente houve melhorias, o país ficou ligado, as estradas aconteceram... Só que a festa durou pouco, porque a estrada passados poucos anos já não existia outra vez, porque mais uma vez puseram água no vinho. E aquilo que era uma obra para durar 20 ou 30 anos, durou cinco.
No Kuando Kubango, por exemplo, ainda há turmas que chegam a ter 91 alunos por sala de aula. Em Lunda-Sul, 76, Luanda, 65, Bié, 52. Em todas as províncias existem salas de aula ao ar livre que, em 2015, albergavam 754 mil alunos em 16 províncias, com maior incidência para as zonas rurais. O número de crianças fora do sistema decorre da inexistência de salas de aula e do número insuficiente de professores. Os encarregados de educação em muitas províncias não conseguem inscrever os seus filhos porque a escola não tem vaga.
NJOnline - A Educação deveria merecer grande atenção por parte do Governo.
AS - O Ensino Primário é o que mais nos preocupa, porque é o alicerce sobre o qual se erguem os restantes pilares do sistema educativo. E tem sido vítima de uma gritante ausência de prioridade no que à eficiência e pertinência do sistema diz respeito, pois não cumpre uma educação para a vida, nem respeita as exigências da globalização, baseado numa modesta e desarticulada estrutura de formação de professores. Estas constituem as principais causas do insucesso deste nível de ensino onde o rácio professor aluno é alarmante e indicador de que o número de professores existentes não acompanha o incremento anual de novos alunos. Passados tantos anos de paz ainda não temos um Ensino Primário de qualidade, nem temos um ensino para todos, já que, em 2018, dois milhões de crianças ficaram fora do sistema. E, veja, o investimento em Educação pouparia muito dinheiro ao Estado. Dou-lhe um exemplo: uma mãe educada faz saúde preventiva e isso poupa milhões de dólares ao Estado.
O Novo Jornal Online, esta semana, sentou-se à mesa com parceiros sociais, como o SINPROF, entrevista publicada ontem, a HANDEKa, a ADRA, com deputados da comissão parlamentar da Educação, como Jaka Jamba, e pediu ainda pareceres a sociólogos e economistas sobre um dos sectores que mais importância tem na vida dos cidadãos e na construção de um país.
Neste trabalho, para tentar esboçar um retrato o mais fiel possível do estado da Educação no país, contamos com os leitores. Queremos também saber o seu ponto de vista sobre este tema e conhecer a sua história ou a de alguém que lhe seja próximo. Para isso, basta que nos envie um mail para [email protected].