As equipas técnicas que os 54 países da União Africana tiveram a trabalhar 24 horas por dia, durante as últimas semanas, em Kigali, pareciam ter tudo preparado para que o continente africano surgisse aos olhos do mundo como um bloco compacto de intenções e decisões coerentes para que, por fim, o tão desejado bloco económico alargado de comércio livre visse a luz do dia já na quarta-feira, durante a Cimeira Extraordinária de Chefes de Estado e de Governo na capital do Ruanda, marcada para isso mesmo.

Com este pacto continental, a circulação de bens deixará de ter barreiras alfandegárias e, quando o processo estiver concluído, também as pessoas deixarão de encontrar obstáculos nas deslocações entre o ponto mais a norte do continente, Ras ben Sakka, na Tunísia, até ao cabo das Agulhas na África do Sul, como o ponto mais austral, mas, parece ser na África Central/Ocidental que começam a surgir os primeiros entraves a este desígnio pan-africano.

Muhammadu Buhari, Presidente da Nigéria, depois de o seu Conselho Federal Executivo, que esteve a gerir as negociações em Kigali, ter anunciado a aceitação por parte de Abuja das decisões finais sobre a ZLEC, numa decisão de última hora e surpreendendo tudo e todos, emitiu um comunicado a informar que não vai deslocar-se a Kigali porque precisa de mais tempo e novas consultas aos parceiros que vieram a terreiro acusá-lo de não os ter ouvido nem informado devidamente sobre as negociações em curso.

Se a decisão de Buhari vai ou não deitar por terra este esforço, ainda é cedo para o dizer, mas dificilmente o comércio será efectivamente "livre" no plano continental africano sem o gigante que é a Nigéria, com os seus mais de 180 milhões de habitantes e o PIB mais alto do continente, com uma localização geográfica estratégica, dentro da ZLEC e empenhado no seu sucesso.

"O Presidente não se vai deslocar a Kigali como estava previsto para a Cimeira porque importantes actores e parceiros nigerianos indicaram que não foram devidamente consultados e, por isso, manifestaram preocupações sobre o conteúdo do acordo", sobre a ZLEC, disse a Presidência nigeriana em comunicado emitido hoje em Abuja.

Os números a frio

Este tratado pan-africano de comércio livre tem como pano de fundo um desequilíbrio gigantesco e contra-natura nas trocas comerciais internas e externas, como um dos negociadores angolanos, Arcanjo do Nascimento, citado em Kigali pela Angop, sublinhou, ao lembrar que o comércio interno, o que abarca 1,2 mil milhões de pessoas distribuídas por 54 países, representa apenas 16 por cento das transacções globais, o que contrasta, por exemplo, com os 19% com a América Latina, 51% com a Ásia ou os 70 % com a Europa.

Isto, porque as barreiras alfandegárias no continente são esmagadoras para qualquer projecto que tenha como objectivo aumentar e diversificar o comércio entre os membros da União Africana, embora, mesmo que o imbróglio criado à última da hora pela Nigéria seja ultrapassado, como sublinhou Arcanjo do Nascimento, para além das trocas comerciais, este movimento abrangente só poderá ter sucesso se foram igualmente eliminadas as barreiras existentes à movimentação de pessoas, porque não se pode compreender que um empresário tenha de ter um visto para acompanhar os seus negócios através do continente.

Angola, que ao longo dos últimos anos, se mostrou bastante reticente a este desfecho para fazer crescer o comércio interno em África, está agora apostada na sua conclusão e a prova disso mesmo é que o Presidente João Lourenço vai estar em Kigali, na quarta-feira, para a assinatura do acordo que dá corpo legal à ZLEC.

Com a eliminação, que deverá ser gradual já a partir de 2019, das barreiras alfandegárias, o continente poderá aumentar o volume de negócios internos mais de 50 por cento, podendo chegar aos 35 mil milhões de dólares norte-americanos, num espaço de pouco mais de 5 anos, com o bónus que todos almejam, que é uma acentuada diminuição das importações extra-continentais na ordem dos 11 mil milhões e ainda um significativo aumento das exportações fora do ciclo muita vezes "maligno" dos recursos naturais, como sejam, entre outros, o petróleo, os diamantes e outros recursos minerais.

Este "pacto" impõe ainda que os membros se comprometam fortemente com alterações legislativas internas, por forma a uma adequação à nova realidade transcontinental.

As razões a montante

Foi na última Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA), que teve lugar na sede da organização pan-africana, em Adis Abeba, Etiópia, que foi aprovada, pelos 55 membros, a ZLEC, tendo, na ocasião, alguns dos membros sublinhado a sua importância como uma ferramenta de combate e de resistência às grandes potencias que durante décadas exploram o continente.

Como lembrou, citado pela Lusa há semanas, Carlos Lopes, o Bissau-guineense que foi secretário executivo da Comissão Económica para África (CEA) das Nações Unidas entre 2012 e 2016, esta resposta africana tem como alvo os manifestos "disfuncionamentos" da Organização Mundial do Comércio (OMC) e as derivas liberais da União Europeia, leia-se antigas potenciais coloniais, de quem, com esta decisão, incluindo a China, África poderá iniciar o caminho da sua emancipação.

Para os analistas que acompanham esta caminhada de longos anos dos países africanos, em síntese recolhida pelo Novo Jornal Online a partir de textos de opinião e análises divulgadas nas últimas semanas, o facto de África estar agora a dar este passo de forma mais sólida que alguma vez foi feito, embora com alarmantes fragilidades, demonstra que existe hoje uma consciência continental de que não existe outro caminho para o desenvolvimento económico e para o surgimento de uma indústria razoavelmente competitiva.

Esta passo é ainda essencial, continuando a síntese recolhida pelo Novo Jornal Online, para que os países, organizados à escala continental - União Africana -, na dimensão sub-regional - comunidades de desenvolvimento -, ou ainda internamente enquanto Estados soberanos, avancem com medidas sólidas e céleres para a construção de sistemas de ensino de qualidade como fonte de recursos humanos para as cada vez maiores exigências que a economia moderna impõe.

E estes passos são, seguramente, essenciais para que esta decisão continental não morra às mãos de cada um dos membros nas suas incapacidades ou que não gerem discrepâncias tais que alguns Estados se confrontem com situações insuportáveis como sejam verem as suas economias soterradas por outras vizinhas mais avançadas e com tecidos produtivos mais competitivos, acabando por voltar a fechar intempestivamente as portas às pessoas e aos bens.

Angola?

Como lembram diversos estudos e, especialmente, um gerado pela UA, um dos grandes problemas é a cultura de proteccionismo existente na maioria dos países africanos e, como se sabe, também em Angola, onde, como lembra o presidente da AIA, José Severino, ao semanário Expansão, o tecido empresarial "está muito atrasado" para poder retirar todo o proveito desta nova realidade que vai ser o mercado único africano.

Tal como aconteceu com a Nigéria, também em Angola uma boa parte dos empresários e industriais acusam o Governo de estar prestes a assinar o acordo sem serem consultados, deixando a classe "a leste" do essencial.

José Severino adverte mesmo que, por isso, o impacto deste acordo pode demorar muito tempo a poder ser observado no terreno em Angola.