Depois de ter aterrado no aeroporto de Taipé, capital da ilha independentista, na pouco antes das 23:00 de terça-feira, já hoje, quarta-feira, e depois de uma noite de sono para se recompor da tensão que se viveu no seu avião a caminho da ilha, no meio de uma forte turbulência gerada pela tempestade de ameaças directas de Pequim, Nancy Pelosi encontrou-se com a Presidente taiwanesa.
A Tsai Ing-wen, Pelosi reiterou a indómita vontade dos Estados Unidos manterem e aprofundarem a amizade e a cooperação com a ilha - Washington nunca deixou de, oficialmente, considerar esta como parte da República Popular da China no âmbito da política de "uma só China" de Pequim - enquanto, já na conferência de imprensa que se seguiu ao tête-à-tête, prometia o renovado e empenhado apoio americano à segurança de Taiwan.
Se a visita à ilha, que não estava na agenda oficial do "tour" da 3ª figura do Estado nos EUA pelo sudeste asiático, foi uma bofetada diplomática na China Popular continental, o encontro de Nancy Pelosi com Ing-wen foi uma alfinetada no orgulho do Partido Comunista da China, que sustenta o Governo enquanto partido único, porque a história de Taiwan está fortemente marcada pela derrota de Chiang Kai-shek em 1949 face às forças do fundador da China "vermelha", Mao Tse Tung, obrigando o "rebelde" a refugiar-se na ilha, que governou até 1975, ano em que morreu, sem conseguir, apesar de tudo, desvincular-se totalmente da "soberania" de Pequim, que mantém este território adjacente no mapa oficial de todo o território chinês.
O problema em pano de fundo é que todos os governos eleitos em Taiwan desde 1975 mantiveram a questão em cima da mesa, ora com empenhado esforço rumo à independência total, ora mantendo o status quo - que é o que defende actualmente Washington, pelo menos no papel -, ora visando, embora mais raramente, buscar um entendimento visando uma forte e sólida autonomia face à China continental, sendo que Washington e os seus aliados no Indo-Pacífico, especialmente o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália ou os menos empenhados mas, ainda assim, aliados neste contexto, Singapura e Malásia, defendem sem rebuço os interesses de Taipé face a Pequim, gerando uma tensão que perdura há décadas no Mar do Sul da China.
E isso mesmo ficou claro quando, na conferência de imprensa após o encontro com Tsai Ing-wen, Pelosi sublinhou o "crucial" apoio e solidariedade dos EUA para com Taiwan, o que não é, do ponto de vista diplomático, menos que uma bofetada no Governo de Xi Jinping, que tem em escassos meses um estratégico Congresso do PCC, no qual busca a sua recondução no cargo, e, sem dúvida, a forma como gerir esta crise determinará o seu sucesso ou insucesso nesse desígnio.
Para já, o Governo de Xi Jinping, via Ministério dos Negócios Estrangeiros, mandou chamar o embaixador dos EUA em Pequim para obter explicações sobre esta "chocante e provocadora" visita a Taipé da 3ª figura do Estado, ao mesmo tempo que mandava avançar as suas poderosas forças navais, terrestres e aéreas para exercícios de grande envergadura no estreito de Taiwan, com recurso a fogo real e lançamento de misseis de última geração, numa demonstração de que Pequim não está para brincadeiras, como, alias, antes da chegada de Pelosi a Taipé, o líder chinês tinha advertido o Presidente Joe Biden: "Quem brinca com o fogo, acaba por se queimar", disse-lhe.
Mais disse ainda o chefe da diplomacia de Pequim, Wang Yi, ao considerar, durante uma deslocação oficial ao Cambodja, legítima a "punição clara de todos aqueles que ofendem a China", descrevendo esta visita como uma "farsa" que recorre à democracia para ferir a soberania chinesa.
Nada que tenha travado o passo nesta desafiante iniciativa de Pelosi, que já chegou aos 82 anos e não parece querer baixar a "espada" neste duelo com as autoridades chinesas continentais, afirmando a partir de Taipé que "a mensagem mais relevante" que tem para Pequim é "o empenho inquebrantável na garantia da segurança de Taiwan" fundando esse preceito "na partilha de valores da democracia e da liberdade" onde a ilha é "um exemplo para o mundo".
E, num remoque particular, Pelosi atirou ainda: "Se o Presidente da China tem problemas com a sua situação política, isso já não sei, não nos diz respeito", reforçando, todavia, a ideia de que a sua situação política é clara e que nos seus planos está a garantia de que os EUA "não vão abandonar" a ilha face às ameaças de Pequim, que, recorde-se, já disse que Taiwan voltará para as mãos da República Popular da China, a bem, de preferência, ou a mal se tiver de ser, o que quer dizer que do outro lado do estreito se prepara há muito uma acção militar sobre Taipé.
Embora essa opção esteja fora da cartilha de Pequim, para já, o Governo chinês emitiu, segundo a Bloomberg, avisos de interdição do seu espaço aéreo em torno de Taiwan devido aos exercícios militares que vão decorrer até Domingo .
E a Rússia olha de longe e...
Um dos pontos mais sensíveis desta intrincada e acesa polémica é o impacto que pode ter na reformulação do "xadrez mundial", onde a Rússia, no âmbito da sua "operação militar" na Ucrânia conta com o apoio, não directo, mas de facto, da China, o que permitiu a Moscovo vir agora a terreiro posicionar-se claramente ao lado do seu "aliado".
O ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Sergei Lavrov, sublinhando que a China tem o direito irrefutável de defender os seus interesses, apontou o dedo acusador aos EUA, de quem disse que se comportam como "arruaceiros do mundo" onde pensam que "podem fazer tudo o que quiserem" em "total impunidade".
Esta visita a Taiwan da líder do Congresso norte-americano, segundo Lavrov, "só pode ser entendida como uma demonstração dos EUA de quem fazem o que querem e quando quiserem de forma impune", como a mostrar que quem mada é Washington, "como se depreende pelo facto de os norte-americanos saberem muito bem da importância que este assunto tem para a China".
Mas esta visita, e como se depreende do tom e do conteúdo das palavras de Sergei Lavrov, tem outra importância de médio termo, porque tende a fortificar, como já estão a admitir alguns analistas, a "união" Pequim-Moscovo no esforço em curso, juntamente com países como a Índia, Brasil, África do Sul... para transformar a "ordem mundial" que vigora desde o fim da II Guerra Mundial, onde o predomínio sobre as instituições que a formatam, FMI, Banco Mundial, ONU, etc; é inequivocamente dos EUA e dos seus aliados ocidentais mais próximos, como Reino Unido ou França...
Como tem sido afirmado tanto por Moscovo como por Pequim, este movimento, que Lavrov tem repetido que "opõe" dois terços (2/3) de oprimidos da Humanidade face a um terço (1/3) de privilegiados ocidentais, pretende uma ordem mundial mais "plural, justa e equilibrada" sem que uns se vejam "beneficiados apenas porque sim".
O início da aproximação Pequim-Moscovo
Isso mesmo ficou preto no branco quando, em Março desde ano, já depois do início da invasão russa e da guerra na Ucrânia, quando os ministros dos Negócios Estrangeiros chinês e russo estiveram reunidos numa cidade do leste da China, onde Sergei Lavrov aproveitou para anunciar que Moscovo e Pequim procuram estreitar laços, fortalecer as suas relações e criar condições para erguer uma "nova ordem mundial mais justa".
O chefe da diplomacia russa, citado pelos media do seu país, que teve aqui o seu primeiro encontro com o homólogo chinês, Wang Yi, desde que começou a guerra na Ucrânia, com a invasão do país pelas forças russas, a 24 de Fevereiro, aproveitou para confirmar que os dois países buscam como objectivo comum alterar a actual ordem mundial, que está assente em instituições criadas no pós II Guerra Mundial e onde os países ocidentais, especialmente os EUA, "ditam as regras", como a ONU, o FMI ou o Banco Mundial, entre outras.
Lavrov, assim que chegou à cidade de Tunxi, na província de Anhui, frisou esse objectivo comum entre os dois países vizinhos, Rússia e China, de trabalharem para criar uma ordem mundial "justa, multipolar, e democrática".
Da parte chinesa, segundo a agência TASS, Wang Yi disse, na mesma ocasião, que, "apesar dos novos desafios" para as relações entre Moscovo e Pequim, "a vontade dos dois dias é a de desenvolver relações ainda mais fortes que as actuais".
A referida nova ordem mundial de Lavrov tem como contraparte a actual ordem mundial, que pode ser definida pelas suas instituições alegadamente controladas pelos países ocidentais, especialmente os da União Europeia, dos EUA, da Austrália, Japão ou Coreia do Sul, mas que alguns analistas sublinham ser errado este conceito geográfico, preferindo uma divisão entre democracias plenas e as autocracias ou regimes autoritários, onde estão países como a China, que vive uma ditadura do Partido Comunista, ou a Rússia, uma autocracia, onde o poder está claramente concentrado num só homem, o Presidente, mas também a Índia ou a maior parte dos países africanos e alguns latino-americanos.
E, como alguns analistas rapidamente vieram, agora, com a actual crise gerada pela visita de Nancy Pelosi a Taiwan, admitir, a aproximação de Pequim a Moscovo pode ser ainda mais evidente e, provavelmente, com uma abordagem renovada da China para com o conflito no leste europeu, eventualmente desafiando os EUA, que são os maiores apoiantes da Ucrânia na guerra com a Rússia, apoiando de forma mais vincada e visível o esforço de guerra de Moscovo que sente evidentes dificuldades face ao permanente e avultado apoio com material bélico sofisticado do ocidente aos ucranianos.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.