E isso, porque, numa entrevista explosiva à France24, um canal de televisão internacional público francês, o Presidente e recandidato pela 4ª vez consecutiva disse que o seu país está pronto para uma guerra com a República Democrática do Congo (RDC).
A questão por detrás desta entrevista é conhecida e pode ser revisitada nas notícias feitas do Novo Jornal com links em baixo, nesta página, tendo como pano de fundo a acusação de Kinshasa sobre o apoio de Kigali aos rebeldes do M23 que há anos desestabilizam o leste congolês.
O Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, acusa o Ruanda de desestabilizar o leste do seu país por razões económicas, aproveitando-se da instabilidade guerrilheira para explorar os recursos naturais da região, o que é consistente com um relatório de 2022 da ONU que diz o mesmo.
Kigali recusa tal responsabilidade, embora, no decurso de uma cimeira em Luanda, organizada pelo Presidente João Lourenço, no âmbito da sua liderança da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), Paul Kagame (na foto, com Lourenço e Tshisekedi) tenha assumido que tem ligações de proximidade com os guerrilheiros do M23 comprometendo-se a pressionar as suas chefias para acolherem as resoluções dos processos negociais para a paz de Luanda e de Nairobi.
Neste entrevista, feita já há alguns dias, Kagame é claro é frisa que o seu país está preparado para uma guerra com a RDC "se for necessário", sendo que esta declaração tem contornos de relevância extraordinária porque é feita no arranque da campanha eleitoral para as eleições de 15 de Junho, onde deverá voltar a ser eleito sem dificuldades de maior.
Isto, apesar das muitas acusações de ilegalidades feitas pela oposição nos escrutínios anteriores, onde Paul Kagame saiu vencedor por largas margens, quase sempre superiores a 90%.
Pela frante, Kagame, desde 1998 no poder, terá, como principais opositores, isto, depois de quatro importantes nomes terem sido afastadas pelas autoridades eleitorais do país, Frank Habineza, do Partido os Verdes, e o independente Philippe Mpayimana, entre nove candidatos.
A longevidade de Kagame no poder é resultado de uma alteração à Constituição aprovada no Paramento, em 2015, onde a duração dos mandatos passou de sete para cinco anos, o que permite a Kagame perpetuar-se na Presidência até 2034... legalmente.
Mas a questão da disputa eleitoral é claramente secundária, porque a sua reeleição é já dada como certa, sendo a questão mais sonora a disponibilidade mostrada agora por Kagame para uma guerra com a RDC, quando isso não é sequer relevante para acirrar os eleitores a votar de forma patriótica num cenário de pré-guerra.
Ainda mais fulgurante, o Presidente ruandês disse que "o Ruanda está preparado para a guerra e não tem medo de nada nem de ninguém", naquilo que é uma resposta evidente às recentes acusações de Félix Tshisekedi de que o Ruanda está a levar a cabo um genocídio no leste do Congo, sublinhando que Kagame incorpora o regresso da "ideologia do genocídio" nas províncias do nordeste congolês, principalmente no Kivu Norte e Kivu Sul.
Esta referência é particularmente grave porque ainda é parte da memória colectiva o genocídio de mais de 800 mil tutsis - a etnia de Kagame - no Ruanda, em 1994, pela maioria Hutu, impulsionado por razões étnicas e de luta pelo poder.
Questionado sobre a presença de militares ruandeses em solo congolês, Kagame recusou responder, apesar de países como os Estados Unidos o admitirem já, embora sendo Washington historicamente um dos grandes aliados de Kigali.
Porém, ultimamente, a importância geoestratégica e económica dos recursos da RDC estão a movimentar essas placas tectónicas de interesses e os EUA já mostraram que podem virar a agulha para Kinshasa, igualmente no contexto da guerra de influência em África que trava com a China (que detém o grosso da exploração dos recursos congoleses) e com a Rússia.
Face a estas ameaças renovadas, não sendo a primeira vez que são feitas, as duas organizações regionais que lideram os processos de conversações de paz, Angola, pela CIRGL, e o Quénia, pela Comunidade da África Oriental (EAC, na sigla em inglês), deverão agora reforçar os mecanismos de resolução do conflito latente.
A presença de um importante contingente com milhares de soldados de países da região para estabilizar a região, incluindo angolanos, no leste da RDC, permita agora uma monitorização da situação no terreno em tempo real.
E isso pode dificultar a repetição de uma tragédia semelhante à de 1994, mas dificilmente será suficiente, pelo menos nos actuais moldes, para impedir uma guerra entre os dois países se existir motivação suficiente para isso dos dois lados.
Recorde-se que o leste da RDC é uma das regiões do país e de África mais ricas em recursos naturais estratégicos, como coltão, cobalto, terras raras ou mesmo ouro e diamantes, o que gera a cobiça dos países ocidentais mas igualmente de grupos regionais e nacionais que arrecadam fortunas colossais ao controlarem as áreas de exploração ilegais.
Essas áreas de garimpo ilegal são quase sempre alimentadas com recurso a trabalho forçado de populações locais indefesas, incluindo o uso de milhares de crianças, como várias organizações internacionais o atestam.
E parece mesmo haver, porque, numa recente visita do ministro belga dos Negócios Estrangeiros, André Flahaut à RDC, após um encontro entre ambos, o Presidente Tshisekedi voltou a reafirmar as razões do diferendo com o vizinho Ruanda.