O anúncio desta extensão do acordo de Istambul, que foi assinado por acção da Turquia e da ONU, que conseguiram levar a Federação Russa e a Ucrânia a assinar dois documentos em separado, foi feito pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Alexandr Grushko, ao mesmo tempo que reafirmou o descontentamento de Moscovo face às restrições ainda por levantar às exportações dos cereais e fertilizantes russos.
O Kremlin chegou a anunciar que poderia não assinar este prolongamento porque, apesar dos alimentos não estarem em nenhum dos 10 pacotes de sanções do ocidente aplicados à Rússia após a invasão da Ucrânia, os seus navios não estão a conseguir como previsto obter seguros internacionais e rotas seguras para exportar os seus cereais e fertilizantes quando os ucranianos não enfrentam quaisquer restrições.
O Mecanismo dos Grãos do Mar Negro, cuja primeira extensão termina agora, no dia 18 de Março, foi assinado em Julho do ano passado e tem como alicerces a garantia de que Rússia e Ucrânia usam o posto de vistoria criado em Istambul, em cujo estreito o Mar Negro entra no Mar Mediterrâneo para garantir que esses navios graneleiros não estão a servir para introduzir nada de ilegal, como armas, na zona do conflito.
Isso só foi possível depois do Kremlin ter garantido que a sua frota do Mar Negro deixa livre um corredor marítimo entre os portos do sul da Ucrânia e o Estreito de Istambul, obtendo em troca o acesso sem restrições aos navios necessários para os seus próprios grãos e fertilizantes, fortemente condicionados pela oposição das companhias seguradoras a cobrirem esse transporte, o que Moscovo diz que não está a sucede apesar de estarem os russos a cumprir todas as suas obrigações contratualizadas no Acordo de Istambul.
Antes do acordo ter sido conseguido pela diplomacia turca e das Nações Unidas, a Rússia, que mantinha o Mar Negro fechado a estes navios, como, de resto, a todos a caminho dos portos ucranianos, para impedir a importação de armamento por esta via, foi alvo de uma forte campanha de propaganda que alinhava na ideia de que Moscovo estava a impedir a chegada de milhões de toneladas de cereais a milhões de africanos à beira de uma catástrofe humanitária por essa razão.
No entanto, pouco depois, em Novembro do ano passado, o Presidente russo voltou a ameaçar fechar o Mar Negro de novo porque dos cerca de 100 navios graneleiros que deixaram as costas ucranianas, apenas dois, fretados pelas Nações Unidas, tinham, de facto, atracado em portos africanos, sendo os restantes, dirigidos à Europa ocidental, à Turquia e aos sul-coreanos e japoneses, entre outros, como à Indonésia ou aos ricos petroestados do Médio Oriente.
Face à constatação de que a fome em África tinha sido uma "armadilha" para fazer os russos cederem, embora essa lógica seja igualmente desmontável porque Moscovo tem igualmente todo o interesse em garantir os milhões obtidos com a exportação dos seus cereais e fertilizantes, Vladimir Putin foi deixando sair a ideia de que poderia interromper este acordo a qualquer momento devido às falhas ocidentais na parte que lhes cabe, como a facilitação do acesso aos seguros para os navios russos ou ao seu serviço.
Mas este ponto ganhou dimensão de escândalo quando o jornal austríaco eXXpress, já este ano, divulgou uma investigação onde demonstra que alguns países, como a Espanha, auto-suficientes na produção de grãos para a sua população, estava a enfrentar dificuldades para alimentar os porcos que abate aos milhares para alimentar a sua indústria de enchidos e fumados, desde logo o famoso Presunto Ibérico, e estava a conseguir milhares de toneladas para produzir rações animais quando em África, especialmente na alargada região do Corno de África, milhões de pessoas enfrentam sérias dificuldades e a fome severa alastra dia após dia.
Das cerca de 24 milhões de toneladas que saíram dos portos ucranianos, e depois de o próprio Secretário-geral da ONU, António Guterres, ter sido um dos pilares da campanha inicial de pressão sobre Moscovo, alicerçada na "fome em África e no Iémen", apenas uma pequena percentagem chegou efectivamente aos países africanos mais necessitados, sendo ainda a maior parte do que chegou ao continente absorvida pelos mais ricos do norte, Marrocos, Argélia, Egipto...