A anexação das duas repúblicas independentistas do Donbass, Donetsk e Lugansk, territórios situados na fronteira leste da Ucrânia com a Rússia está em cima da mesa. E, agora, numa jogada clara para apressar o processo que decorre desde 2014, o Kremlin decidiu avançar com referendos locais para oficializar a sua integração em território da Federação Russa, tal como ocorreu com a Crimeia, em 2014.
A consequência imediata da realização destes referendos, que acabam de ser anunciados para terem lugar entre 23 e 27 de Setembro, é que o que hoje são territórios rebeldes para a Ucrânia, e repúblicas independentes reconhecidas pela Rússia e pelos seus mais apertados aliados, como a Síria ou a Coreia do Norte, passam a ser parte de pleno direito da Federação Russa, às quais Moscovo passará a defender como qualquer outra região do país, nomeadamente em caso de ataque externo, o que é um factor que pode elevar de forma robusta a densidade militar deste conflito.
Estes escrutínios, que devem igualmente abranger a província de Kherson - e, provavelmente, também a de Zaporijia -, mais a sul, na costa do Mar Negro, tomada pelos russos em Março/Abril, vão decorrer já depois de Moscovo ter reconhecido a sua independência a 24 de Fevereiro, o que serviu para justificar a invasão, e que, agora, com este upgrade, poderá também voltar a servir de rampa para uma escalada flamejante dos combates, a ponto de o Presidente dos EUA, Joe Biden, se ter sentido, nos últimos dias, obrigado a vir a terreiro avisar Putin para não usar armas de destruição em massa, porque isso teria uma resposta "nunca vista" da parte da NATO.
E os massacres, quem é que os protagonizou?
Quem acompanha minimamente o decurso deste conflito, lembrar-se-á facilmente que em finais de Fevereiro, os russos avançaram com longas colunas militares sobre a capital ucraniana, Kiev, tomando e assentando forças nas cidades limítrofes da capital, como Bucha e Irpin, entre outras.
Nestas duas localidades, depois de terem sido retomadas pelas forças ucranianas, em violentos combates, e de as forças russas terem abandonado a região, foram denunciados graves massacres que o Presidente ucraniano se apressou a difundir nas redes sociais e nos media ocidentais como tendo tido como autores os militares russos, gerando um forte clamor internacional, aproveitado pela União Europeia e pelos Estados Unidos (NATO) para reforçar de forma vigorosa o apoio militar, financeiro e político a Kiev.
Ao mesmo tempo, os media russos, que foram censurados no ocidente logo no início do conflito, difundiam a versão de Moscovo, negando autoria da mortandade, mas ignorando totalmente nos media ocidentais, tal como a comunicação social russa, fortemente controlada pelo Kremlin, ignorava, na sua maioria, as acusações de Kiev, ou difundia partes seleccionadas com objectivo claro de manipulação, como, de resto, o estão a fazer centenas de órgãos de comunicação social ocidentais, a favor de Kiev.
Para encontrar a verdade sobre estes crimes de guerra, que existiram, faltando apurar a sua forma definitiva e a autoria, que pode ser de um lado ou do outro, ou dos dois, as Nações Unidas, depois de o seu Secretário-Geral, António Guterres, também ter ido aos locais, tal como muitos lideres ocidentais, sendo a mais empenhada a presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen, anunciaram a realização de uma investigação internacional assegurada pelos seus técnicos e especialistas.
Até hoje não se sabe do resultado deste inquérito, mas sabe-se que permite alimentar, no ocidente, a versão de Kiev sobre a autoria russa dos massacres.
O que voltou a acontecer perante outros crimes de guerra graves, desde logo o bombardeamento da prisão controlada pela Rússia e pelos seus aliados locais do Donetsk, onde estavam os prisioneiros de guerra do batalhão de origem nazi, Azov, que se renderam na conquista pelas unidades de combate russas da metalomecânica de Mariupol, Azovstal, e já mais recentemente, em Izium, no leste ucraniano, onde, com a saída dos russos, face a uma contra-ofensiva ucraniana, foram encontrados locais com campas às centenas.
Em todos estes locais se repete o cenário: Kiev acusa Moscovo, Moscovo acusa Kiev da autoria dos crimes de guerra, que existiram, faltando apenas certeza sobre o que ocorreu em Izium, onde os mais de 450 corpos, segundo os russos, são militares ucranianos que tombaram durante os combates, além de alguns civis, vítimas colaterais da guerra, segundo os ucranianos, são vítimas da tortura e da acção russa. Mas a ONU repetiu o compromisso de investigar. Até hoje nada se sabe destas investigações.
Mas sabe-se que, na parte comunicacional, Kiev tem-se valido das acusações aos russos para conseguir obter armas e apoio financeiro do ocidente, especialmente da União Europeia e dos EUA. E é também facto que a verdade a apurar pela ONU será a verdade histórica desta guerra, o que pode aumentar o apoio do mundo à Ucrânia se se provar a culpa de Moscovo, ou esmorecer o apoio a Kiev se se vier a concluir que as suas acusações ao Kremlin são infundadas e falsas.
Uma coisa já se sabe, não pela mão das Nações Unidas, mas pela Amnistia Internacional, que a 05 de Agosto, veio contradizer as versões ucranianas sobre vários ataques a hospitais e escolas alegadamente pelas forças russas mas que esta ONG internacional, insuspeita de qualquer simpatria por Moscovo, veio demonstrar que se tratava, em muitos dos casos, de locais ocupados por forças militares ucranianas e sem qualquer uso, no momento, como escolas ou unidades de saúde, tal como vinha a dizer o Kremlin.
Sabe-se que a verdade é sempre a primeira baixa em todas as guerras, mas começa a ser claro que esta tarda a vir à tona devido à morosidade das investigações das Nações Unidas, que podem alterar claramente o curso desta guerra e, provavelmente, encurtá-la.
Mudança de táctica à vista
A estratégia para esta guerra está a ser questionada com cada vez maior insistência no seio da sociedade militar e política russas, com os media estatais a fazerem eco das dúvidas sobre as opções do Kremlin - o que quer dizer que foram autorizadas a fazê-lo com a intenção de medir e testar o pulso à sociedade civil - , fazendo ouvir as vozes que querem ver Moscovo a subir um patamar nesta ofensiva, deixando de lado as limitações inerentes à "operação militar especial" definida por Vladimir Putin, empregando apenas tropas profissionais, sem recurso a reservistas, com um claro limitado leque de alvos militares, o que poderia, por exemplo, levar a Rússia a alvejar as infra-estruturas ferroviárias e rodoviárias, tornando-as inúteis, barragens, centrais eléctricas, ou mesmo avançar para bombardeamentos aéreos estratégicos com recurso aos bombardeiros pesados supersónicos como o TU-160 (Tupolev) etc, o que ainda não se viu, exceptuando casos pontuais, como a destruição de uma barragem na semana passada para impedir as tropas inimigas de atravessar o rio.
Mas em Moscovo não se equaciona recorrer a munições nucleares, como alguns analistas ocidentais têm admito que pode suceder face a evidentes perdas na frente das forças de combate russas, como, por exemplo, as ogivas nucleares tácticas, de "pequeno" alcance, cujo efeito é sentido apenas numa área limitada, e que foram desenhadas para conter súbitos avanços do inimigo com ameaça de destruição da capacidade de combate, sendo parte dos arsenais tanto da Federação Russa como dos EUA.
Também as armas de destruição alargada como as químicas ou biológicas não estão no leque das possibilidades, sendo mesmo, tal como o nuclear, um elemento claro das linhas vermelhas traçadas pelo Presidente norte-americano, Joe Biden, que voltou, numa entrevista recente à CBS, a advertir para os riscos de resposta devastadora a Moscovo se der esse passo nesta guerra, onde Washington e os seus aliados europeus são parte directamente interessada ao fornecerem o apoio vital e ilimitado de armamento e financeiro a Kiev com o objectivo admitido, como o disseram sem titubear o Secretário de Estado Antony Blinken, e o Secretário da Defesa, Lloyd Austin, de vergar a Rússia e enfraquecê-la até se tornar irrelevante no mundo.
Alias, um sinal de que ninguém sabe ao certo o que vai suceder nos próximos dias, e quando o Inverno já bate à porta do Hemisfério Norte, com as suas temperaturas, naquela parte da Europa, a chegarem aos 30º negativos facilmente, é que as chefias militares norte-americanas ordenaram a elevação do estado de prontidão das suas forças (NATO) no leste europeu, especialmente na Polónia - o maior apoiante de uma guerra directa da Aliança Atlântica com a Federação Russa -, por temerem uma reacção elevada em escala por parte de Moscovo face às dificuldades enxovalhantes para uma superpotência militar sentidas na frente de combate.
De Moscovo não tardou a resposta. Dmitry Peskov, o porta-voz do Kremlin respondeu a Joe Biden dizendo que Moscovo nem sequer percebe as palavras do Presidente norte-americano porque a sua doutrina nuclear russa está bem clara e escrita, acessível a todos os interessados, e limita o recurso ao arsenal nuclear - o maior do mundo, diga-se - quando estiver perante uma ameaça existencial à Federação Russa, o que, concluiu, não o caso do que se passa actualmente no conflito na Ucrânia.
Mas é igualmente verdade que Vladimir Putin também traçou linhas vermelhas aos norte-americanos e aos seus aliados europeus, especialmente ao Reino Unido, quando lhes disse que tudo mudaria de perspectiva se estes fornecerem misseis de longo alcance aos ucranianos, e lembrou, o que Biden concordou, que no dia em que as tropas da NATO e da Rússia se alvejarem directamente, pouco ou nada poderá impedir uma escalada para o nuclear e o fim mais que certo da Humanidade tal como a conhecemos.
Em boa verdade, embora não seja coisa para já, essa possibilidade cresce a cada dia que passa sem que se veja um fim para este conflito, muito por causa do massivo apoio ocidental/NATO à Ucrânia como meio de derrotar os russos, como, por exemplo, também já o disse a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula Leyen, tendo mesmo garantido a semana passada que a União Europeia vai aumentar e não reduzir o apoio financeiro e militar (os países individualmente) a Kiev, bem como engrossar as sanções, as mais violentas de sempre aplicadas a um país, à Rússia, mesmo que isso vá aumentar de força trágica a galopante crise económica que assola a Europa ocidental, os EUA, com efeitos devastadores em quase todo o mundo.
E com perspectivas negativas para os próximos meses, porque as sanções e as represálias de Moscovo estão a reduzir o volume de gás natural e crude exportados pela Rússia, deixando a União Europeia à beira de uma crise energética sem precedentes, que pode ter consequências económicas e financeiras impossíveis de antecipar para já.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.