Ainda não é claro qual o novo papel que a China quer ter neste teatro cada vez mais globalizado em que se está a transformar a guerra na Ucrânia, agora que se aproxima a data do primeiro ano de duração daquele que é já o mais mortífero e perigoso conflito militar deste o final da II Guerra Mundial, em 1945, mas sabe-se que não é o mesmo que desempenhou até hà passada semana, porque o tom de voz do porta-voz do MNE, Wang Wenbin, endureceu quando já esta semana disse aos norte-americanos que não têm "qualificações para dar lições" sobre fornecimento de armas a partes em conflito.
Estas palavras do MNE chinês saíram em resposta às ameaças tanto dos EUA como da União Europeia de que Pequim estaria atravessar uma "linha vermelha" se inicia-se o fornecimento de armamento à Federação Russa, às quais acrescentou que são os americanos e nãos os chineses que estão a alimentar o conflito ucraniano com um fluxo permanente de armas para Kiev.
Wenbin foi ainda mais longe e disse aos norte-americanos que não estão em condições de opinar sobre as relações entre a China e a Rússia, até porque "quem está a entregar armas para o campo de batalha e a instigar o confronto são os EUA e quem está a apela à paz é a China".
Apesar de a China recorrentemente vir a público aconselhar os EUA e ou a União Europeia a não se intrometerem nos assuntos internos do país, esta foi a primeira vez em muitos anos que foi dado um recado directo ao ocidente com um tom de voz elevado e claramente crispado pelo porta-voz do MNE, em Pequim.
"As pessoas questionam-se como é que os EUA clamam falsamente que a China está a oferecer armas à Rússia quando são eles que inundam de armas a Ucrânia, achando que podem, em consciência, dizer que querem a paz, ao mesmo tempo que tudo fazem para continuar a garantir avultados lucros à sua indústria militar com este conflito", disse o responsável chinês, citado pela Xinhua.
E acrescentou: "Todos vimos o que os EUA fizeram no Afeganistão coma sua estratégia de lutar até ao último afegão. Querem agora também lutar até ao último ucraniano?", questionou no tom mais severo ouvido em Pequim em muitos anos num "recado" diplomático a Washington.
E, numa demonstração de que Pequim não se encolhe com os recados do ocidente, o seu diplomata mais graduado, Wang Yi, ex-MNE e actual responsável pelas relações externas do Partido Comunista Chinês, que se impõe pela proximidade ao Chefe de Estado, chegou esta quarta-feira a Moscovo para encontros com as autoridades russas, inclusive com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, sendo razoável admitir que entre os tópicos das conversações estão o reforço das relações sino-russas, que já estão melhores que nunca, e ainda a possibilidade de Pequim avançar com uma proposta para terminar as hostilidades na Ucrânia, o que os chineses só farão se existir um compromisso mínimo prévio.
Yi "tour"
Para conseguir esse compromisso mínimo, Wang Yi esteve nos últimos dias com os chefes das diplomacias francesa, alemã, italiana, e manteve um encontro em Munique, durante a Conferência sobre Segurança Internacional, na passada semana, com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, o que perfaz o grupo dos países mais influentes no ocidente - a Polónia, o país mais agressivo face à Rússia, ficou de fora desta ronda -, estando agora em curso a auscultação do Kremlin sobre o conteúdo da proposta, admitindo-se que venha a estar com o Governo ucraniano logo a seguir, eventualmente em Kiev, até porque o MNE ucraniano já admitiu estar interessado em ouvir os pormenores da proposta chinesa.
Isto tudo, quando faltam dois dias para o "aniversário" da guerra, que começou, segundo a visão ocidental, a 24 de Fevereiro de 2022 com a invasão da Ucrânia pelas forças russas, mas que os russos contrapõem com a ideia de que se trata de uma nova fase apenas da guerra que já dura há nove anos, e que começou em 2014 com o golpe de Estado que destronou do poder o Presidente eleito em 2010, o pró-russo Viktor Yanukovych, o que levou à proclamação da independência das Repúblicas Populares do Donbass, Donetsk e Lugansk, e a anexação da Crimeia, e ao inicio dos confrontos com as forças nacionalistas de Kiev.
Vai ou não sair deste périplo de Weng Yi uma saída para o imbróglio global que já é esta guerra? Essa é a pergunta do milhão de dólares, mas há indícios de que tal pode suceder durante ou logo após a efeméride de sexta-feira, quando se cumpre um ano inteiro de sangue a jorrar nas trincheiras do leste europeu.
E um desses sinais é que, apesar das promessas ocidentais estridentes de mais armas e mais sofisticadas, como os carros de combate pesados, os M1 Abrams, dos EUA, Leopard-2 alemães, ou os Chalenger-2 britânicos e os Leclerc franceses, os misseis de longo alcance ou até os aviões de guerra F-16,, norte-americanos, a verdade é que nada chegou, ainda, aos ucranianos, quando os russos estão claramente a avançar na frente de batalha no Donbass, contando os defensores de Kiev apenas com vitórias sucessivas... na frente mediática, onde os media ocidentais são claramente uma "legião estrangeira" ao serviço de Kiev.
E isso pode significar que ambos os lados se estão a preparar para chegar à mesa de negociações em melhor posição sobre o outro, sendo as promessas de reforço de armas ocidentais uma forma de pressionar Moscovo a alinhar em termos mais flexíveis para a definição das garantias mínimas procuradas pela China para então apostar tudo na sua proposta de paz, visto que, nesse cenário, em Kiev, o Presidente Volodymyr Zelensky já estará "trabalhado" pelos países ocidentais, nomeadamente pelos EUA.
Os EUA, quando o Presidente Biden prepara a sua corrida eleitoral às presidenciais de 2024, atravessam uma crise económica movida a inflação e risco de recessão, sendo do interesse do seu Partido Democrata chegar aos últimos meses de campanha sem o incómodo do conflito ucraniano a correr, porque isso é um manancial infinito para a oposição republicana, que deverá, se não houver surpresas, apresentar de novo Donald Trump na corrida, atacar politicamente a Administração Biden, até porque é a guerra que levou a inflação para valores históricos de décadas.
E na Europa, sucedem-se os sinais de que o cansaço com a guerra já é superior à convicção de que o ocidente deve manter-se ao lado de Kiev neste confronto com os russos, até porque, embora isso não esteja a ser destacado pelos media europeus, as manifestações contra a guerra sucedem-se em vários países, como a que decorreu ainda na semana passada, com quase 100 mil pessoas em Berlim.
O que propõe Pequim?
O que poderá ter a proposta chinesa de atraente para todos os lados neste conflito? Para já pouco ou nada se sabe, porque o seu conteúdo só será divulgado depois de sexta-feira ou durante esse dia, coincidindo assim com o primeiro ano de guerra, mas alguns jornais estão, nesta quarta-feira, 22, a avançar com algumas possibilidades.
E uma síntese dessa antecipação passa por Pequim entender que a territorialidade ucraniana deve ser respeitada na mesma proporção que as exigências de segurança existencial russas, o que pode abrir a porta para um compromisso de meio-termo.
Compromisso esse que pode ser, por exemplo, o Donbass e a Crimeia passarem em definitivo para a Rússia, com aceitação de Kiev e dos seus aliados ocidentais, a Ucrânia voltar a ser soberana no todo ou em parte de Kherson e Zaporijia, regiões anexadas por Moscovo em Setembro de 2022, e a Ucrânia ter garantias sólidas de apoio financeiro total para a reconstrução e para a sua reindustrialização moderna, garantias de segurança por um grupo de países integrando a China e os EUA, mas mantendo-se fora da NATO, ficando em aberto, à parte, a sua entrada na União Europeia.
New START, velhos problemas...
Ao mesmo tempo que o mundo procura desenvencilhar-se desta guerra no leste europeu, um problema bem mais "quente" foi despoletado no discurso do Presidente russo, que teve lugar no mesmo dia do de Joe Biden, em Varsóvia, na terça-feira, frente ao Parlamento Federal, onde anunciou que a Federação Russa suspende a sua participação do START, o acordo entre Washington e a Rússia, assinado em 2010 e prolongado posteriormente até 2021, que determina as regras da redução dos arsenais nucleares dos dois países, assim como as inspecções mutuas para confirmar o seu cumprimento.
Putin justificou esta decisão, que está a gerar um incontido pânico em todo o mundo, com as exigências norte-americanas que considera incompreensíveis, como a ideia de que os arseias russos devem ser inspeccionados mas o inverso não é permitido pelos norte-americanos, sublinhando que seria uma ideia "bizarra" que só pode sair da "cabeça de alguém que fugiu de um manicómio", que é um país que diz publicamente que quer ver a Rússia derrotada e humilhada no campo de batalha, ter portas abertas para inspeccionar o seu sistema de defesa, quando não respeita a legitimidade da postura inversa.
E Putin avisou ainda que a Rússia está preparada para avançar com novas armas nucleares de última geração e respectivos testes se os EUA o fizerem primeiro, tendo avançado que detém informações que apontam para que os EUA estão a preparar exactamente isso, realizar testes com armas nucleares.
Face a este resvalar para uma memória histórica que arrepiou o mundo durante décadas de Guerra Fria, entre a então URSS e os EUA, as Nações Unidas já vieram a pública clamar por uma paragem para pensar dos lideres dos dois países, pedindo que Moscovo repense a decisão de abandonar o New START, voltando ao compromisso histórico de manter o curso da redução do seu arsenal nuclear, ao mesmo tempo que os EUA fazem o mesmo.
Também o líder da NATO, Jens Stoltenberg, naquilo que parece uma atitude algo estranha, vem apelar a Putin que retire a ideia de suspensão no START, quando é ele mesmo o principal "pivot" do crescendo no desafio à Rússia pelo ocidente/NATO com o empenhado e frenético esforço para convencer os países-membros da Aliança Atlântica para enviar "mais e mais armas" para "derrotar a Rússia sem apelo nem agravo" porque essa é, entende, "a única forma de garantir a paz".
Recorde-se que Vladimir Putin não abandonou este compromisso, suspendeu-o apenas, o que permite um abrangente leque de possibilidades de a ele voltar em breve, o que o mundo aplaudiria de pé, mas disse, em Fevereiro de 2022, no que foi corroborado, ou vice-versa, por Joe Biden, que uma escalada no conflito para uma guerra entre a Rússia e os EUA/NATO seria o mesmo que apertar o botão vermelho de um catastrófico Armagedão nuclear.
Recorde-se que EUA e Rússia possuem 90% do arsenal nuclear global, sendo que os russos são os detentores de mais ogivas, perto de 6.000, enquanto os americanos somam mais de 5.400. Os restantes países com arsenais nucleares são a França, o Reino Unido, a China, o Paquistão, a Índia, a Coreia do Norte e Israel.
Este acordo prevê que, no tempo, seja possível que entre ambos não possuam mais de 1.550 armas nucleares estratégicas e não mais de 700 misseis de longo alcance e bombardeiros estratégicos, com ambos os lados a poderem sem oposição conduzir até 18 inspecções anuais ao arsenal do outro.
Vladimir Putin volta hoje a discursar em Moscovo para mais de 100 mil pessoas, no estádio Nacional, embora não se esperem novidades além da galvanização nacional dos feitos russos... mas com o chefe do Kremlin a precisar de manter uma retórica justificadora do conflito na Ucrânia, nunca se sabe o que poderá acontecer.
Medvedev strikes again
O antigo Presidente russo, Dmitri Medvedev, actual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, voltou a "atacar" com uma das suas habituais frases bombásticas a que já ningém dá muita importância porque são repetitivas, mas desta feita voltou a avisar os EUA de que ao admitirem que visam uma derrota estratégica, logo existencial, da Rússia, o seu país passa a contar com legitimidade total para recorrer ao seu arsenal nuclear.
Nesta declaração, citado pelo Russia Today, Medvedev avisa "as elites norte-americanas" que não são intocáveis, numa reacção aos discursos dos dois Presidente, Biden e Putin, na terça-feira, nomeadamente a notícia de suspensão da Rússia no START, ou os repetidos anúncios de Biden de que vai enviar mais armamento, num fluxo ilimitado, para Kiev de forma a que a Ucrânia possa ganhar a guerra aos russos.
Sobre esse anúncio, o antigo líder russo adiantou que há muito que o antecipava e que este deve servir de aviso aos lideres norte-americanos que pensam que podem levar a Rússia a uma derrota militar na Ucrânia sem consequências, porque "a segurança estratégica é outra coisa", sendo o "grande erro dos EUA ignorar as diferenças".
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo..
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.