A argumentação sul-africana para esta queixa ao TIJ, um tribunal que, ao contrário do Tribunal Penal Internacional (TIP), onde corre, por exemplo, o processo contra o Presidente russo, Vladimir Putin, integra a estrutura máxima da justiça das Nações Unidas, que decorre das evidências encontradas por Pretória de genocídio da população de Gaza, tem ainda como suporte a exigência de medidas urgentes da ONU para proteger os palestinianos dos bárbaros ataques de Israel.
Por detrás desta "causa" sul-africana está a histórica ligação da África do Sul, no tempo em que neste país se combatia o apartheid, que durante décadas, até 1994, era uma Estado racista, onde a minoria branca governava face a uma esmagadora maioria negra, com o apoio de quase todo o ocidente, com destaque para o Reino Unido e os EUA.
E que foi, ainda na década de 1960, sintetizada por Nelson Mandela, com uma frase que ficou como mantra do Congresso Nacional Africano (ANC), onde este afirmou que a luta do seu partido contra o Governo racista sul-africana estava intrinsecamente ligada à luta dos palestinianos e que sem a libertação total da Palestina não estaria concluída a luta do ANC.
A apoiar a causa sul-africana estão dezenas de países, via organizações onde estão representados ou singularmente, como a Turquia, a Jordânia, e a Malásia, além da Organização para a Cooperação Islâmica (OCI), que agrega todos os países islâmicos mais de 50, e alguns que não o são oficialmente mas têm largas percentagens da sua população que professam esta religião, onde estão alguns oriundos dos Palop, como Moçambique e Guiné-Bissau.
Na apresentação da causa, os advogados sul-africanos vão argumentar sobre as razões que justificam a acusação de genocídio sobre a população palestiniana de Gaza, o que fica em evidência pela trágica realidade revelada pelos números, mais de 23 mil mortos em três meses, perto de 60 mil feridos, numa esmagadora maioria, mais de 70%, crianças e mulheres, que não são, evidentemente, combatentes do Hamas.
Além desta cifra, que coloca a quantidade de civis mortos neste conflito entre as mais altas de sempre em todo o mundo, num tão curto espaço de tempo, Israel, para esconder este cenário devastador, está, como organizações internacionais de jornalistas têm repetido, a matar deliberadamente os repórteres no terreno que relatam os acontecimentos em curso, com mais de 120 a terem já sido mortos, além de mais de 150 funcionários das Nações Unidas ao serviço da sua agência para Gaza, a UNRWA.
Esta audição em Haia, nos Países Baixos, onde está a sede do TIJ, vai decorrer esta quinta-feira e sexta-feira, 12, e, nesta fase inicial do processo, que se deve prolongar por vários dias, Pretória visa acelerar as medidas provisórias de atenuação da acção das Forças de Defesa de Israel (IDF) que desde 07 de Outubro estão a atacar por mar, ar e terra o exíguo território de Gaza, que tem apenas 365 kms2 para albergar mais de 2,3 milhões de habitantes, mais de 6.500 por km2, uma das mais altas densidades populacionais do mundo.
Na retaliação da incursão dos combatentes do Hamas, as Brigadas Al Qassam, no sul de Israel, a 07 de Outubro, fazendo 1200 mortos e 2 mil feridos, as IDF, além dos 23 mil mortos e 55 mil feridos, impuseram deslocações forçadas de 1,3 milhões de pessoas de suas casas, dos 36 hospitais no território, apenas sete ficaram de pé e funcionais, e a escassez de alimentos e água potável está a fazer de Gaza uma passadeira vermelha para doenças infecciosas, como cólera, além de uma já grave subnutrição.
As Nações Unidas consideram já que a Faixa de Gaza deixou de ter as condições mínimas de habitabilidade e quem ali vive está exposto a riscos de morte que vão muito além das causadas pelos bombardeamentos e pela incursão terrestre actualmente em curso, que resultou na destruição de mais de 70% dos edifícios deste território com apenas 40 kms de extensão por nove de largura.
Segundo a página oficial da ONU, a África do Sul justifica a acusação com as suas "obrigações e direitos" para "prevenir o genocídio em curso em Gaza" e impedir a aniquilação da população do território, alegando que tais direitos e obrigações estão respaldados na Convenção das Nações UNidas para Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, que foi assinada em 1948, curiosamente o ano da criação do Estado de Israel.
Contra esta iniciativa sul-africana estão, naturalmente, Israel, mas, principalmente, o seu maior aliados, os Estados Unidos, que, aproveitando a sua presença no Médio Oriente, o secretário de Estado, Antony Blinken, fez saber que Washington considera-a "sem qualquer mérito e contraproducente", com algumas fontes a adiantarem que este terá mesmo afirmado ser "uma palermice".
O mesmo não pensa a Turquia, a grande potência militar da NATO europeia, cujo Presidente, Recep Erdogan, disse mesmo que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyhau, está a ser "pior que Hitler" na forma como promove a limpeza étnica na Palestina.
Este caso legal chega ao TIJ um dia depois de Antony Blinken deixar a região, onde esteve, no seu 4º tour pelo Médio Oriente após 07 de Outubro, com o objectivo de travar o alastramento do conflito para lá das fronteiras de Gaza....
... Israel armadilhou Blinken
O secretário de Estado norte-americano concluiu a sua 4ª visita ao Médio Oriente durante esta fase da guerra entre palestinianos de Gaza e Israel, onde chegou com o objectivo principal de evitar um alastramento do conflito para a região mas apenas leva como possibilidade a ideia de constituição de um Estado palestiniano como solução para o eterno conflito israelo-palestiniano.
Antony Blinken colocou, claramente, a fasquia demasiado alta quando anunciou como objectivo para este seu acelerado 4º "tour" pelo Médio Oriente a criação de uma fire wall diplomática para conter o conflito israelo-palestiniano na Faixa de Gaza, porque Israel o presenteou à chegada com duas fortes razões para a expansão do conflito: o assassinato de duas figuras relevantes dos dois mais importantes movimentos armados apoiados pelo Irão, Saleh al-Arouri, vice-líder do Hamas, em Beirute, capital do Líbano, através de um comando, presumivelmente, da Mossad, e Wissan al-Tawil, o comandante das Radwan, as forças especiais do Hezbollah, na fronteira libanesa com o norte de Israel.
Face a estas faíscas que não estavam no guião do secretário de Estado, a este restava atirar-se à solução que menos agrada ao Governo israelita de Benjamin Netanyhau, o mais extremista, religiosa e ideologicamente (extrema direita), que é usar a instauração de um Estado palestiniano independente como "cenoura" para levar o lado palestiniano a aceitar regressar à ideia de um definitivo acordo de paz entre as duas partes, sendo que isso só será possível com a Autoridade Palestina, de Mahmoud Abbas, porque o Hamas, comandando por Ismail Haniyeh, rejeita, por princípio estatutário, essa possibilidade ao não admitir a existência de um Estado israelita na Palestina.
Ou seja, com estes desenvolvimento, o mais longe que o enviado de Washington conseguiu ir, depois de ter estado na Arábia Saudita, Turquia, Qatar, Jordânia, EAU, Egipto... e por fim Israel, foi afirmar, antes de embarcar de regresso a casa, que os lideres regionais com quem falou mostraram-se receptivos à ideia de dois Estados na Palestina, o que não é sequer uma novidade, porque tal está previstos desde os velhos acordos de Oslo, assinados na década de 1990, e aos quais vários países da região deram o seu "aval" como solução para o conflito que mantém em permanente tensão o Médio Oriente desde 1948, data da criação oficial de Israel.
Foi, face a este cenário, sobre questões que não estavam no cerne da agenda para esta volta ao Grande Médio Oriente, que Blinken se virou, como a questão do futuro de Gaza e da sua população de 2,3 milhões, com perto de 1,3 milhões deslocados devido aos ataques israelitas, o excesso de mortos, sendo o "número de crianças mortas demasiado alto", disse, como se isso não fosse uma evidência desde o primeiro dia, além dos 23 mil mortos (10 mil creianças) e 55 mil feridos, e ainda a recusa dos EUA em aceitar o exílio forçado destas populações nos países vizinhos, ou um Governo sob comando de Telavive para Gaza no pós-guerra.
Ao mesmo tempo, Blinken, que, no início deste conflito, se apresentou em Israel como chefe da diplomacia dos Estados Unidos e judeu, como era já esperado face ao inequívoco apoio a Israel, mitigado apenas com ligeiras chamadas de atenção sobre o excesso de força, colocando claramente de parte um apelo ao cessar-fogo pelos EUA.
A expansão do conflito
O Hezbollah, movimento com décadas de presença no sul do Líbano, e com um histórico de guerras devastadoras com Israel, a última das quais em 2006, que levou os israelitas a ceder em várias frentes, e que viram na intervenção da ONU a saída in extremis para uma derrota humilhante, tem mantido deste 07 de Outubro, data do assalto do Hamas ao sul de Israel, que desencadeou a operação em Gaza, constantes trocas de fogo de artilharia com as posições israelitas.
O seu líder, Hassan Nasrallah, não tem poupado ameaças a Israel de uma redefinição do papel do movimento neste conflito, com a abertura de uma nova frente de guerra no norte de Israel, se Telavive mantiver a devastação em Gaza e as incursões da sua aviação sobre o sul do Líbano para atacar as suas posições.
A fina película que separa estas trocas esporádicas de fogo entre posições do Hezbollah e das Forças de Defesa de Israel (IDF) de um conflito em larga escala é por onde os piores receios anunciados por Blinken podem surgir, mas isso não impediu os israelitas de abater nas últimas horas o comandante das Radwan do movimento pró-Irão, país que tem repetido igualmente a disponibilidade total de atacar Israel se a mortandade em Gaza não for travada.
Com esta morte de al-Tawil, mais um episódio no mínimo perigoso, depois de os israelitas terem abatido o vice do Hamas, Saleh al-Arouri, em Beirute, na semana passada, e de um ataque no túmulo do general iraniano Qassem Soleimani, que fora abatido em 2020 por um drone dos EUA em Bagdade, ter feito mais de 90 mortos, o cenário desejado por Blinken para a sua 4ª visita ao Médio Oriente em três meses, quase a aterrar em Israel, oriundo da Jordânia, é, no mínimo, um desafio.
Algumas vozes de analistas que há muito observam as tensões no Médio Oriente, encaram esta sucessão de ataques a líderes do Hamas e do Hezbollah, e o no túmulo do mítico general iraniano, antigo comandante da Guarda Revolucionária, embora a sua autoria não esteja ainda clara, é uma tentativa do Governo de Telavive de armadilhar o contexto regional para atrair os EUA para um confronto directo com o Irão.
Isto, porque as relações entre Washington e Teerão nunca foram tão tensas, porque Israel há muito que procura uma justificação para atacar o Irão e porque a eclosão de um conflito regional de grandes dimensões é a única forma de o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyhau, a braços com muitas explicações para dar sobre a incrível falha de segurança a 07 de Outubro e processos judiciais sérios, onde é arguido por crimes de corrupção e peculato, se manter livre de uma condenação judicial e política.
Condenação essa que porá, seguramente, fim à sua carreira política e o colocaria sob risco evidente de ser detido se vier a ser provada a sua ligação aos crimes de peculato e corrupção e às falhas de segurança que permitiram aos combatentes do Hamas entrar em Israel, sob a inépcia da Mossad (secreta externa), do Shin Bet (secreta interna) e da AMAN (secreta militar) consideradas entre as melhores do mundo.
Este recente ataque israelita ao carro que transportava o comandante das Radwan do Hezbollah, Wissan al-Tawil, no sul do Líbano é claramente uma pedra de grandes dimensões que entrou abruptamente na complexa e difícil diplomacia norte-americana para o Médio Oriente.
Se o objectivo maior dos EUA, como sublinhou Blinken, é impedir a explosão desta estratégica região para os interesses de Washington e que, pelo menos parece muito, Israel está empenhado em dinamitar porque os seus interesses, neste momento, não coincidem com os norte-americanos.
E esta incandescente situação no Médio Oriente está a decorrer num momento especialmente melindroso para a Administração Biden, em ano de eleições, para as quais já decorrem acções de pré-campanha, como aquela em que, nesta segunda-feira, Joe Biden foi interrompido num discurso eleitoral por manifestantes presentes na sala exigindo um cessar-fogo imediato em Gaza, mostrando uma visível escalada da contestação popular ao apoio sem limites de Washington a Israel.
O momento foi especialmente melindroso porque Biden estava a falar da ausência de luz que o ex-Presidente e candidato às Presidenciais de Novembro próximo, Donald Trump significa para os EUA, quando uma manifestante lhe disse alto e bom sim que a ausência de luz em Gaza está a matar milhares de pessoas pela acção israelita que o Presidente dos EUA tem o poder de travar quando quiser.