Este recrudescimento dos ataques violentos dos rebeldes da CODECO, embora a autoria dos mais recentes ataques ainda esteja a ser verificada com exactidão, em Ituri, que vem juntar "enxofre" ao inferno que o leste congolês já é há décadas, aparece num momento em que as autoridades de Kinshasa lidam com um conjunto de problemas ligados aos múltiplos grupos de guerrilha que fazem desta geografia uma fornalha que está a incinerar a autoridade do Estado.

À violência, que por vezes, parece impossível de explicar sejam quais forem os critérios, porque são mortos velhos, mulheres e crianças indiscriminadamente, agrega, agora, nas três províncias do leste da RDC, Ituri, e os Kivu, Norte e Sul, além da CODECO, o Movimento 23 de Março (M23), que não estão a cumprir o acordo de Luanda, assinado em Novembro do ano passado, a Aliança das Forças Democráticas (ADF), com origem no Uganda, e que em 2021 juraram fidelidade aos radicais do "estado islâmico", e a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR), sendo que existem outras milícias locais igualmente selvagens e letais.

Alguns analistas congoleses, mas também de acordo com relatórios de organizações internacionais, admitem que, hoje, mais que nunca, o leste do Congo, onde já existem mais de dois milhões de deslocados e milhares foram mortos em ataques das guerrilhas e milícias desde a década de 1990, no rasto do genocídio do Ruanda, onde mais de 800 mil tutsis foram massacrados pela maioria Hutu, começa a ser uma região onde impera a lei do mais forte e a anarquia.

E tudo sem que o Estado tenha uma palavra a dizer, apesar dos esforços das organizações regionais, como a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), liderada por Angola, ou a organização dos Países da África Oriental (EAC), actualmente com o Burundi ao comando, para imporem a estabilidade na zona, seja através de acordos assinados, como o de Novembro de 2022, em Luanda, seja os assinados em Nairobi, no Quénia, com o envio, inclusive, de uma forma militarizada de interposição para obrigar ao cumprimento dos acordos.

A FDLR e a ADF nunca deixaram de forçar o seu caminho a tiro e violência ilimitada, o M23 e a CODECO, que também foram criadas nos idos de 1990, só em 2021 reemergiram depois de quase uma década de hibernação, sendo que em pano de fundo para este "regresso", qual Fénix das cinzas, são os cada vez mais interesses em jogo nesta região, desde logo os gigantescos recursos naturais no seu subsolo.

Se a CODECO tem o seu "core business" nas minas de ouro da região, algumas das mais importantes estão sob o seu controlo, já o M23 parece ter o foco na exploração de coltão e cobalto, dois minérios raros e estratégicos para as novas tecnologias de comunicação digital e ligadas à transição energética, como a electrificação dos automóveis ou a indústria aeronáutica, enquanto a ADF, agora sob a batuta do radicalismo islâmico do "daesh", e a FDLR, aparecem, embora sem perderem a ligação aos negócios do subsolo, mais como "soldados da fortuna" ao serviço de quem pagar mais.

Um dos problemas mais pesados neste contexto em que o leste congolês está, efectivamente, a um passo, apesar do empenho dos lideres regionais, como o Presidente João Lourenço ou o antigo Presidente do Quénia, Uhuru Keniatta, é que o Chefe de Estado congolês, Félix Tshisekedi, não estanca o passo na acusação ao Ruanda, de Paul Kagame, de estarem por detrás da força do M23, com o intuito de desestabilizar a área entre o Kivu Norte e o Kivu Sul, enquanto em Kigali, o dedo aparece apontado a Kinshasa como garante da logística e armamento da FDLR, para atormentarem o lado ruandês da fronteira.

Alguns analistas sublinham mesmo que se não fosse o mundo estar a lidar com a guerra na Europa, entre a Rússia e a Ucrânia/NATO, todas as atenções estariam hoje postas no leste do Congo tal é o perigo deste se tornar numa bola de fogo incontrolável que pode queimar toda a África Central.

Isto, desde logo pelos interesses que estão em jogo, que podem ser facilmente explicados tendo em conta que é ali que está, crê-se, 80% de todas as reservas de coltão no mundo, estando o resto na China e no Brasil, embora menos neste , o que deixaria, se o fluxo fosse descontinuado, as potências ocidentais sem solução, porque, até agora, não existe substituto a este minério para se fabricarem dos smartphones e simillares aos laptops, etc.

E o maior risco, é, claramente, o de uma guerra entre a RDC e o Ruanda, porque se Félix Tshisekedi acusa, directamente, Kigali de apoiar o M23, Paul Kagame parece não ter duvidas de que é Kinshasa que mantém aceso o fogo da FDLR, havendo já registo de várias escaramuças entre os dois exércitos.

Mas não é menos faísca à beira deste barril de pólvora, o avanço, como, alias, os bispos católicos congoleses do CENCO têm vindo a advertir, do "estado islâmico" sobre os Grandes Lagos, onde, ao que tudo indica, procuram, além da protecção da perseguição mais aguda a que estão sujeitos no Sahel (Mali e Burquina Faso...) e no Corno de África (Somália, Quénia, Etiópia) mas também do Sudão e do Níger, aceder também eles às riquezas do subsolo congolês.

Os sinais que chegam da região são claros: nem a MONUSCO, a mais robusta militarmente, com autorização permanente de combate, e uma das mais dispendiosas missões da ONU em todo o mundo, em conjunto com as Forças Armadas da RDC, nem a força de interposição da EAC, com mais de 2.500 combatentes no terreno, para garantir o cumprimento dos acordos de Luanda e de Nairobi, parecem ser capazes de vergar as diversas guerrilhas e milícias.

A ONU, através do seu braço armado e político no terreno, condenam insistentemente a violência descontrolada destas organizações terroristas sobre as populações indefesas, o que torna esta região numa das menos compreensíveis aos olhos dos organismos internacionais e pan-africanos, porque é muito difícil encontrar um racional para a morte e a violência extrema sobre comunidades indefesas, sem poupar mulheres, crianças e velhos.

A explicação cínica é que estes grupos querem expulsar as comunidades das terras mais ricas no subsolo, para que a extracção de diamantes, ouro, coltão ou cobalto, que deixam a região para o mundo através de complexas redes de tráfico, quase sempre protegidas pelas forças rebeldes, havendo mesmo relatórios que apontam, por exemplo, para que o Ruanda esteja a reexportar o coltão congolês com enormes dividendos, sendo o apoio, alegadamente, ao M23 equivalente a proteger a rota do minério até ao interior ruandês.

Embora as suspeitas de envolvimento ruandês no tráfico do coltão congolês sejam antigas, até porque este país aparece como exportador deste recurso estratégico mas não há registo confirmado de reservas no seu território, é dado como certo pela ONU que Kigali mantém há anos o apoio logístico e em armamento aos guerrilheiros do M23.

O que parece cada vez mais possível é que esta vasta área do leste da RDC, onde desde a década de 1990 já se somam mais de 5 milhões de deslocados, internos e externos, muitos deles estão há anos a fio no Uganda ou no Ruanda, ou mesmo em Angola, se transforme numa "terra de ninguém" com grupos armados a controlarem zonas específicas, como, de resto, já foi a realidade na Somália, durante as últimas décadas, com o Estado, nas alturas em que existiu, não prolongava a sua presença para fora dos subúrbios da capital, Mogadíscio, deixando o resto do território à mercê, por exemplo, dos radicais islâmicos do al-shabbab ou ainda dos piratas do Índico.

Sinais de irritação em Kinshasa

E um dos sinais de que tal cenário não é pura ficção foi dado esta semana pelo Presidente da República Democrática do Congo, que aproveitou a presença no Fórum Económico Mundial (FEM) em Davos, Suíça, para acusar os rebeldes do M23 de estarem a fazer de conta que cumprem o acordo assinado em Luanda.

Félix Tshisekedi explicou, durante a sua intervenção num painel integrado na agenda do FEM, que os rebeldes do M23, que se comprometeram a retirar das áreas e cidades que tomaram de assalto, estão "apenas a mudar de local" para enganar os observadores da EAC, organização dos Estados da África Oriental, que têm um contingente militar ali colocado.

O Chefe de Estado congolês sublinhou que os rebeldes, que insiste, são apoiados pelo Ruanda, "fazem de conta que retiram das suas posições mas apenas se movimentam para se reposicionarem de novo nas imediações destas áreas".

"Eles fazem de conta que se retiram, depois percebemos que não deixaram as cidades que ocuparam, apenas enganaram os observadores, ignorando o acordo assinado na mini-Cimeira de Luanda, onde estiveram os Presidente da RDC e de Angola, bem como do Burundi, na qualidade de líder da EAC, e ainda o ministro dos Negócios Estrangeiros do Ruanda.

Recorde-se que, primeiro, as chefias do M23 vieram dizer que não reconheciam acordos assinados sem a sua presença, mas, depois, aceitaram cumprir o seu conteúdo, até porque o Presidente ruandês, Paul Kagame, tinha, anteriormente, prometido usar a sua influência junto do M23.

Numa resposta a este tipo de acusações por parte de Tshiosekedi, o líder do M23, Lawrence Kanyaka, citado pelas agências, devolveu as críticas, afirmando que é o Governo congolês que não está a respeitar o cessar-fogo e continua a armar grupos que combatem o M23.

Como o Novo Jornal tem noticiado, o acordo de Luanda, que foi complementado com os esforços da EAC, que contou com o ex-Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, como intermediário, tem sofrido altos e baixos no terreno, mas esta foi a primeira vez que o Presidente da RDC comentou a sua implementação, dando-lhe, claramente nota negativa.

Mas o regresso às acusações ao Ruanda de Paul Kagame de estar por detrás da repentina capacidade do M23 é um elemento perigoso, porque os dois países estão há anos em periclitante equilíbrio, estando sempre em cima da mesa uma guerra aberta.

Contexto

As localidades do Kivu Norte, província do leste da República Democrática do Congo, que já deviam estar sem rebeldes do M23, se fosse cumprido o Acorde de Luanda, assinado em Novembro de 2022, continuam ensombradas pelas presença desta guerrilha apoiada pelo Ruanda, como o prova um relatório das Nações Unidas.

Face a esta escassa ou nula evolução no terreno do que está contido no documento assinado na mini-Cimeira de Luanda de 23 de Novembro do ano passado, que os rebeldes começaram por dizer que não iriam cumprir, os Estados Unidos voltaram a fazer um veemente pedido ao Ruanda para acabar com o "apoio" ao M23, e à RDC para extinguir o apoio à guerrilha contrária ao regime ruandês, as FDLR (Forças Democráticas de Libertação do Ruanda), como o Governo de Kigali tem insistido que existe.

Na denominada mini-Cimeira de Luanda ficou estipulado, no documento assinado por todas as partes, que os rebeldes do M23 seriam sujeitos a um calendário concreto para retirarem das áreas tomadas de forma violenta no leste congolês até 15 de Janeiro deste ano.

Este encontro na capital angolana, a 23 de Novembro de 2022, contou com a presença dos Presidentes da RDC, Félix Tshisekedi, e do Burundi, Évariste Ndayishimiye, enquanto líder da Comunidade de Países do Leste africano (EAC), o ministro dos Negócios Estrangeiros do Ruanda, Vincent Biruta, além do anfitrião, João Lourenço, que lidera a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL).

Por detrás de todo este recrudescer da violência nas já de si massacradas províncias do leste congolês, Kivu Norte, Kivu Sul e Ituri, onde se desenrola em trágico contínuo, desde a década de 1990, uma tempestade de violência protagonizada por dezenas de grupos guerrilheiros, criados no húmus do genocídio de 1994 no Ruanda, está o apoio, assim o diz o Governo de Kinshasa, o apoio do Exército e dos serviços secretos ruandeses ao M23, com o objectivo de manter a região desestabilizada.

Desde finais de 2021 que se assiste a uma reorganização do Movimento 23 de Março, abreviado para M23, com moderno equipamento militar, com avanços sólidos na região, assumindo o controlo de dezenas de localidades de uma das mais ricas zonas do mundo em recursos minerais estratégicos - coltão, cobalto, terras raras, ouro, diamantes... -, tendo em meados de 2022 acontecido uma aceleração vertiginosa das acções destes rebeldes.

O M23, tal como outras guerrilhas, nasceu no seio da etnia Tutsi ruandesa, o alvo referencial do genocídio de 1994 perpetrado pela maioria Hutu, e hoje é acusado pelo Governo de Tshisekedi de estar a ser financiado e a contra com apoio logístico do Ruanda, embora não seja muito claro o porquê de tal apoio, que é refutado pelo Presidente ruandês, Paul Kagame, embora este se tenha comprometido com Tshisekedi e João Lourenço a usar a sua influência junto dos lideres da guerrilha para os conduzir a negociações.

Uma das teses mais sólidas para justificar o "apoio" de Kigali aos M23 na sua "conquista" de territórios no leste da RDC - os guerrilheiros dizem que se estão a defender das milícias de origem Hutu - é que, com a sua presença, as forças congolesas e as autoridades se mantêm afastadas da área onde, por isso, mais facilmente, são explorados os seus recursos naturais, nomeadamente o coltão, que os relatórios de organizações internacionais, apontam como facto que o Ruanda é hoje um exportador deste minério essencial na economia mundial, especialmente do universo das novas tecnologias, sem que tal exista no seu subsolo, pelo menos em quantidades comerciais.

Agora, quando a generalidade dos prazos definidos no acordo de Luanda, um roteiro com etapas bem salientes para cumprir por parte dos rebeldes, a EAC e o Governo de Kinshasa estão a, de novo, acusá-los de não estarem a sair das localidades como previsto, dando como exemplo as localidades de Rumangabo e Kishishe, mo território de Rutshuru, no Kivu Norte.

Segundo a rádio das Nações Unidas na RDC, que faz parte da MONUSCO, uma das mais pesadas missões da ONU em todo o mundo, a Radio Okapi, a EAC vai enviar oficiais para o terreno de forma a verificar o cumprimento dos acordos, nas próximas horas, podendo mesmo começar já nesta sexta-feira.

A EAC recorda que a área em questão já está a ser patrulhada pelo contingente que a EAC tem no local para impor o fim das hostilidades, contando com mais de 2.000 militares de países, entre outros, como o Quénia e o Uganda, cuja missão passa por vigiar o cumprimento das regras assumidas e ainda de intervir militarmente contra os rebeldes se tal se manifestar essencial para concluir o acordado.

Algumas fontes locais citadas pelos media congoleses dizem que a lentidão do processo de retirada é ma manobra táctica dos rebeldes do M23 que lhes permite, na verdade, manter as áreas que consideram essenciais, enquanto vão fazendo de conta que estão a cumprir o Acordo de Luanda.

As razões de fundo para este conflito

O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.

E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.

Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.

A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.

Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, hiperpovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.

É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.

Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.

Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC