Se às 18:00 de sexta-feira, o M23 não terminar com a violência e der início à deposição das armas, a força de interposição internacional, composta, até ao momento, por unidades militares do Quénia, Uganda e Burundi, entrará em modo de combate com os guerrilheiros na mira das armas.
Esta ameaça, que surge explícita no comunicado final da Cimeira de Luanda, tem por pano de fundo um contexto de grande melindre, porque o Governo congolês acusa, directamente, o Ruanda de estar por detrás das acções do M23, com apoio logístico, militar e até na integração de tropa profissional ruandesa nas suas fileiras.
A Cimeira reuniu em Luanda, além de João Lourenço, os Presidentes da RDC, Félix Tshisekedi, do Burundi, Évariste Ndayishimiye, na qualidade de presidente em exercício da EAC, tendo o Ruanda enviado, em representação do Presidente Paul Kagame, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Vincent Biruta, tendo-se ainda deslocado à capital angolana Uhuru Kenyatta, ex-Presidente do Quénia e mediador designado pela EAC para a implementação do Processo de Nairobi, que é consubstanciado pelo diálogo, até agora infrutífero, das partes congolesas, o Governo e o grupo de guerrilha.
Uma decisão afirmativa da vontade inequívoca das organizações sub-regionais, como a EAC e a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), presidida actualmente por Angola, com o apoio claro da União Africana e da ONU; era considerada fundamental por todos os analistas depois de a reunião de Nairobi, a 21 deste mês, ter falhado por recusa de Félix Tshisekedi em dialogar com o M23 por considerar que a mão por detrás da sua violência é o Ruanda de Paul Kagame, sendo, por isso, inútil conversar com os líderes desta organização terrorista.
Isso, quando o assalto a Goma, a capital da província do Kivu Norte, e a mais importante cidade de todo o leste congolês, que abrange ainda o Kivu Sul e Ituri, cujas fronteiras vão do leste da República Centro-Africana, do Sudão do Sul ao Burundi, passando pelo Uganda e pelo Ruanda, pelos guerrilheiros do M23 pode estar por horas, tal como se depreende pelo lancinante apelo do chefe da polícia congolesa na região para que a população não hesite em ajudar as forças de segurança na perspectiva de entrada dos guerrilheiros na urbe.
Este ultimato lançado ao M23 pela mini-Cimeira de Luanda teve como pressuposto a ideia de que se os rebeldes conseguem tomar Goma, adquirem uma posição "negocial" mais relevante e com elevado grau de intransigência, e porque a força de interposição regional, que, segundo soube o Novo Jornal, pode vir a ser integrada ainda por forças militares de países da região alargada, como Angola,que possui o mais robusto Exército enre os países próximos do caldeirão incandescente do leste congolês, por exemplo, embora essa questão esteja ainda a ser analisada ao mais alto nível, só agora têm homens e equipamento mínimo para garantir um efeito de dissuasão importante.
Como se pode ler no documento saído da mini-Cimeira de Luanda, onde o Presidente João Lourenço esteve ainda na condição de Campeão da Paz e da Reconciliação em África, título atribuído pela União Africana, o objectivo passava por "estabelecer um calendário para a implementação de acções prioritárias, tendo em vista a cessação das hostilidades e a retirada imediata da M23 das localidades congolesas ocupadas, e a coordenação dos Processos de Luanda e Nairobi".
Das conclusões a que chegaram, sobressai a evidência que é o "agravamento da insegurança e das acções militares persistentes do M23", bem como a constatação de que este grupo de guerrilha está muito bem organizado e foi equipado recentemente com "armas cada vez mais sofisticadas e outros meios" para sustentar as suas acções na região, estado claramente em curso uma poderosa "ameaça à paz, segurança e estabilidade na sub-região".
Face a este panorama sombrio para a região dos Grandes Lagos, e o continente africano no seu todo, os lideres presentes em Luanda decidiram lançar um ultimato para o fim das hostilidades por parte da guerrilha até às 18:00 de sexta-feira, considerando que este é o "Dia D", uma analogia pesada com a denominação histórica do dia da invasão aliada aos territórios ocupados pela Alemanha nazi na II Guerra Mundial...
O documento detalha ainda como imposição o cumprimento das decisões tomadas ao longo dos últimos meses, tanto nas conversações de Nairobi como de Luanda, ficou ainda confirmado vai continuar o "pleno desdobramento da Força Regional", o que é essencial porque se o M23 se recusar a aceitar estas condições, terá início efectivo a reacção militar da força internacional...
O grupo guerrilheiro foi ainda invectivado a retirar de forma imediata e sem preâmbulos das zonas ocupadas em território congolês, estando obrigado a voltar às posições iniciais -anteriores aos recentes avanços - sob o controlo da Força Regional e do Mecanismo de Verificação Ad-Hoc, em colaboração com MONUSCO, que é a missão da ONU na RDC. A mais cara e alargada em todo o mundo mas sob forte contestação popular no país devido à avalanche de situações ilegais cometidas pelos seus integrantes e a alegada ineficácia contra as várias organizações guerrilheiras que actuam no país.
"Caso o M23 se recuse a desengajar e liberar todos os territórios que actualmente ocupam, os Chefes de Estado da CAO orientarão a Força Regional a fazer uso da força para induzi-lo a render-se", avisam os lideres que participaram nesta mini-Cimeira de Luanda.
Um dos pontos mais melindrosos deste extenso documento é o ponto em que é exigida a "cessação de todo o apoio político-militar ao M23 e a todos os outros grupos armados locais e estrangeiros que operam no Leste da RDC e na Região", porque a convicção plenamente demonstrada por parte de Kinshasa é que este grupo é apoiado pelo Ruanda e só uma posição firme do Presidente Paul Kagame pode levar à sua anulação.
Uma das possíveis saídas para este conflito, apesar de Kigali negar que esteja a apoiar o M23, embora acuse Kinshasa de apoiar a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR), a guerrilha ruandesa, com posições sólidas em território congolês, é a declaração de Paul Kagame ao ex-Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, de que vai usar a sua influência para travar o passo ao M23.
Para avaliar o evoluir e os resultados deste ultimato e roteiro para a paz, sendo claro que o sucesso é o desejado mas o insucesso possível - até porque o M23 não é uma das entidades presentes nesta reunião de Luanda -, porque o histórico assim o indicia, depois de múltiplos falhanços ao longo das últimas décadas de actuação de guerrilhas na RDC, especialmente depois do genocídio no Ruanda de 1994, os lideres presentes nesta Cimeira de Luanda, que teve lugar esta quarta-feira, voltam a encontrar-se em Bujumbura, Burundi, embora a data não tenha sido anunciada.
Entretanto, numa declaração já depois de assinado o documento, João Lourenço sublinhou o "feito diplomático" que constitui este acordo de cessão das hostilidades no leste do Congo "com a contribuição das partes envolvidas no conflito".
O Chefe de Estado angolano, preferindo falar nas redes sociais em vez de com os jornalistas, acrescentou que espera agora que o acordo seja "respeitado por todos e que a paz seja a verdadeira vencedora" enfatizando que a vida humana tem de estar sempre "em primeiro lugar".
O cenário alargado
O problema em pano de fundo é que o Governo do Presidente Tshisekedi acredita que este grupo, o M23, que foi criado em 2012 e esteve adormecido até meados de 2021, está a actuar com a cobertura ruandesa e acusa o Governo de Paul Kagame de lhes dar apoio logístico e permitir o uso do seu território para refúgio.
Há meses que que os dois países trocam severas acusações de trespasse das linhas de fronteira, gerando ocasionais escaramuças entre os dois exércitos, mas é na actuação do M23 que o problema se agudiza, com Kinshasa a acusar Kigali de estar por detrás do renascimento deste grupo terrorista para gerar instabilidade no leste da RDC.
Este conflito, que, segundo relatos das agências e dos media com jornalistas no terreno, já provocou centenas de mortos e largos milhares de deslocados, está a colocar em risco a soberania congolesa no Kivu Norte e a capital desta importante província congolesa, devido a sua riqueza em recursos naturais, Goma, pode mesmo ser tomada pelas forças do M23 em pouco tempo.
Para evitar uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, e num contexto em que a sociedade civil congolesa está mergulhada em apelos radicais de acção militar contra o Ruanda, através de manifestações que envolvem centenas de milhares de jovens em várias cidades e regiões, visto como a força de onde saiu o M23 para mergulhar o leste do país no caos, a organização sub-regional Estados da África do Leste (EAC, na sigla em inglês) criou uma força militar de interposição.
Para já, esta força militar, com enquadramento legal para apoiar as Forças Armadas da RDC (FARDC) nas suas acções de combate ao M23, é composta por militares do Burundi, do Quénia e, agora, também do Uganda, devendo contra com mais de 2.500 elementos nos próximos dias, havendo possibilidade de alargar este contingente a outros países.
E no campo diplomático, estão no terreno dois mediadores reconhecidos pela União Africana, o antigo Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, em nome da EAC, e o Presidente angolano, João Lourenço, como líder da CIRGL e ainda na condição de Campeão para a Reconciliação e Paz em África.
Para que a Cimeira de Luanda, tenha sucesso, foi importante, segundo alguns analistas, a admissão por parte do Presidente ruandês, mesmo que tenha primado pela ausência desta vez, de que irá exercer a sua influência junto do M23 para acabar com a sua acção violenta no Kivu Norte.
A questão em cima da mesa a responder é, primeiro, o que opõe de facto os dois países, e como ultrapassar os diferendos, porque, para lá da deposição das armas e da saída das zonas ocupadas, há em pano de fundo outras questões para ultrapassar
A primeira parte da questão é simples: a RDC acusa o Ruanda de apoiar o M23 na sua tarefa de desestabilizar o leste do país; e o Ruanda acusa a RDC de apoiar os guerrilheiros da Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) nas suas acções em território ruandês, como Kigali diz acontecer amiúde, sendo ainda conhecido que o M23 acusa KInshasa de estar a desrespeitar o acordo assinado em 2013, que garantia a integração social dos elementos do grupo que depusessem as armas.
Pelo meio existem ainda quezílias locais étnicas complexas de gerir, porque o xadrez cultural é vasto e atravessa fronteiras em quase toda a extensão da Região dos Grandes Lagos, onde pontificam países como o Ruanda, RDC, Burundi, Uganda, Quénia...
E em pano de fundo está o genocídio de 1994, no Ruanda, onde a maioria Hutu atacou selvaticamente a minoria Tutsi e os hutus moderados, matando mais de 800 mil pessoas, o que deu azo à criação de várias milícias locais de defesa das comunidades que rapidamente evoluíram para grupso de guerrilha organizados, como a FDLR ou as ADF (Aliança das Forças Democráticas), o grupo de cariz islâmico surgido na altura, no Uganda, e que hoje é um ramo do estado islâmico na região.
2ª parte da questão: Responder às razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, sobrepovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC