Passam esta terça-feira, 19, mil dias desde que começou a invasão russa, a 24 de Fevereiro de 2022, altura em que Joe Biden e Vladimir Putin, quase em simultâneo, expressaram publicamente as suas convicções de que um único tiro disparado directamente entre a NATO e a Rússia levará o mundo para a inevitabilidade de uma catástrofe nuclear.
É por isso que este passo agora dado por Joe Biden emerge com estranheza em grande parte dos analistas, porque não foi assim hà tanto tempo que estas declarações foram feitas e o uso destes sofisticados misseis de longo alcance "Made in USA" no interior da Federação Russa só pode acontecer com a intervenção "directa" de militares norte-americanos.
O que significa que, levado à letra, induz à criação do cenário que Biden e Trump definiram como o limite a partir de onde se instala a inevitabilidade de um confronto entre as duas maiores potências nucleares do Planeta Terra.
O passo que não devia ser dado
A dois meses de deixar a Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, autorizou a Ucrânia a atacar alvos no interior da Federação Russa com os seus misseis de longo alcance, os ATACMS, que voam até 300 kms, colocando o mundo à beira de um Armagedão nuclear.
A notícia é do mais influente e com melhores acessos aos corredores da Casa Branca, The New York Times, à qual a Administração Biden ainda não reagiu, confirmando ou negando, mas foi confirmada pelo Presidente ucraniano, que veio a público, num do seus já cansativos vídeos, dizer que "finalmente os misseis vão falar" porque as palavras já não servem para nada.
E também em Washington não parece haver dúvidas de que Joe Biden pretendeu mesmo deixar como derradeiro legado do seu mandato, que termina a 20 de Janeiro próximo, com a tomada de posse de Donald Trump, uma porta aberta para uma catástrofe nuclear que resulta de escrever no seu legado que tudo fez para permitir a resistência ucraniana.
É de tal modo assim que, no último ano, período onde este tema, da autorização de Washington para as forças ucranianas atacarem a Rússia interior com os ATACMS, foi amiúde trazido à liça, Putin avançou mesmo para uma alteração substantiva da doutrina nuclear da Federação.
Alteração essa que passou a permitir que, entre outras novas disposições que alargam a malha das condições para carregar no botão vermelho, a Rússia possa retaliar, tanto de forma convencional como atómica, contra as potências nucleares ou outras, que fornecerem as armas de longo alcance usadas para atingir locais estratégicos na Federação Russa fora da linha de combate.
Luz verde... clarinho
Para já, segundo The New York Times, Biden apenas deu luz verde a Kiev para usar os ATACMS na frente de Kursk, região russa invadida pelos ucranianos em Agosto deste ano, abrindo uma nova frente de guerra dentro da Rússia com fronteiras reconhecidas antes do colapso da então União Soviética, em 1991.
Mas não é esse o entendimento do Presidente ucraniano, o que fica claro quando Volodymyr Zelensky, já depois da notícia do jornal norte-americano, no Domingo, 17, ter vindo dizer qe com esta autorização, a Rússia iria sentir como nunca "os misseis a falar"
"Estamos a ouvir muita conversa nos media sobre a autorização dos EUA para essas respectivas acções, mas os ataques (com ATACMS) não são feitos com palavras e tais coisas não são anunciadas. Os misseis vão falar por eles mesmos", ameaçou Zelensky, citado pelo ucraniano The Kyiv Independent.
A este trespassar da mais carregada das linhas vermelhas desenhadas no "chão" desta guerra por Vladimir Putin, em Moscovo, no Kremlin, apenas se tem ouvido um estridente... silêncio.
Apenas uma figura de terceira linha, Maria Butina, antiga jornalista e deputada, e uma sonora voz no meio mais belicista russo, veio lembrar que este tema foi elencado pelo Presidente russo entre os passiveis de conduzir o mundo para uma abrasiva guerra nuclear de proporções catastróficas para a Humanidade.
Até ao momento, nem Putin, nem o seu ministro dos Negócios Estrangeiro, Sergei Lavrov, ou os seus porta-vozes, Dmitri Peskov ou Maria Zakharova, se pronunciaram sobre este delicado assunto, a não ser esta última para recordar declarações antigas do chefe do Kremlin, o que pode ser visto como fruto da tensão que gerou no Kremlin ou porque a entourage do Presidente sabe que se trata de um anúncio inconsequente.
A hermenêutica do Kremlim
A primeira possibilidade resulta da perspectiva de que, se o Kremlin não reagir a este anúncio com contramedidas de igual "valor facial", passa ao ocidente uma imagem de fraqueza e de que as suas linhas vermelhas, mesmo as mais carregadas, são meros bluffs.
A segunda hipótese é que o Kremlin não vai ligar a estes últimos suspiros de Joe Biden antes de sair de cena, porque sabe que o Presidente-eleito, Donald Trump, assim que chegar à Casa Branca, anulará esta autorização e tirará aos ucranianos o acesso a estas armas para uso no interior russo.
Outra abordagem que retira densidade perigosa a este passo de Joe Biden, quando a Ucrânia está a perder a guerra em toda a linha, como o subscrevem os media ocidentais mais próximos de Kiev, como The Economit, Financial Times, ou The Guardian, com mais ou menos ênfase, é que os ATACMS não são uma novidade no contexto da guerra entre a Ucrânia, com ostensivo apoio dos países da NATO, e a Rússia.
Os misseis em questão chegaram à Ucrânia em 2023 com o fito de serem usados para destruir a estratégica ponte de Kerch (que liga a Crimeia à Rússia continental) mas, apesar de terem sido disparados às dezenas - algumas fontes falam em mais de 150 -, as defesas antiaéreas russas rapidamente se adaptaram ao seu voo e foram sendo sucessivamente abatidos em voo.
Com esta autorização norte-americana, provavelmente também franceses e britânicos vão autorizar Zelensky a disparar para o interior da Federação - para já apenas em Kursk - o Scalp-G e os Storm Shadow, misseis com alcance semelhante aios ATACMS, que, tal como estes, têm sido cada vez menos eficazes graças à adaptação dos sistemas russos de guerra electrónica e antiaérea.
O que leva alguns analistas a elencarem como possibilidade ser esta autorização de Biden apenas uma achega para permitir a Kiev, no âmbito das negociações que se esperam para breve, forçadas pela chegada ao poder de Donald Trump, ganhar mais um trunfo no "poker" que se espera que venha a ser jogado entre ucranianos, russos e os países da NATO/EUA.
Trump, The Peacemaker
Para já, o facto de apenas existirem reacções sólidas de figuras de terceira linha a este anúncio em Moscovo, é um sinal, mesmo que ténue, porque no Kremlin as posições mais sérias levam tempo e ponderação estratégica - por exemplo, esperar para ver como reage a equipa de Donald Trump -, de que na capital russa não se lhe vai dar relevância especial.
No entanto, aqui chegados, convém não esquecer que, em Setembro, Putin disse, publicamente e de forma a ser ouvido com clareza no Ocidente, que os misseis deste tipo, ATACMS, não podem ser unicamente manuseados para disparo por ucranianos devido à sua complexidade tecnológica.
E que isso, porque equipas de países da NATO, britânicas ou norte-americanas, estão na Ucrânia a programar, orientar, apontar e definir trajectos e alvos para estas armas sofisticadas, usá-los para atacar alvos na profundidade russa, seria o mesmo que a NATO declarar guerra à Federação, ou seja, abrir a porta do Armagedão nuclear a prazo.
A procurar aliviar a pressão para evitar esse desfecho está a forma como, no círculo mais próximo de Trump, se está a reagir a este inusitado anúncio de Joe Biden, desde logo do seu filho, Donald Trump Jr, que veio a público criticar a decisão e acusar o ainda Presidente de "querer despoletar a III Guerra Mundial".
"Parece mesmo que o complexo militar industrial quer garantir a III Guerra Mundial antes de o meu pai ter a possibilidade de criar a paz e salvar vidas", disse o filho mais velho do Presidente-eleito dos EUA, chamando mesmo "imbecis" a quem só em olhos para os negócios de armamento de biliões.
E, provavelmente, com mais relevância para se perceber que este passo de Joe Biden é irreflectido e perigoso, surgiu pouco depois, uma notícia na agência de notícias oficial da Rússia, TASS, datada de Washington, 17, onde, citando uma fonte da equipa de transição de Donald Trump, avança que a decisão de Biden vai ser revogada na primeira oportunidade.
E o bilionário Elon Musk, o "sr Tesla" e novo "melhor amigo" de Donald Trump, a quem o Presidente-eleito já apontou para gerir o departamento de eficiência da Administração dos EUA, veio igualmente manifestar o seu desagrado pela decisão de Biden.
Na rede social X (antigo Twitter), de que é proprietário, Elon Musk reagiu com um curto mas sólido "É verdade" a uma publicação do Senador republicano Mike Lee, onde este escreve que "os liberais adoram a guerra" e que "a guerra facilita os grandes (despesistas) governos".
ATACMS, o que são?
Os misseis ATACMS, sigla que comummente define os MGM-140, e que designa, em inglês, Sistema de Misses Balísticos Tácticos do Exército, são projecteis balísticos supersónicos que alcançam até 300 kms, sendo lançados a partir do solo pelos sistemas HIMARS.
A sua mais valia é a mobilidade dos sistemas sobre rodas ou lagartas a partir dos quais são lançados, o que torna muito difícil serem alvejados por fogo de contrabateria.
E quando lançados em grupos de várias unidades, mesmo que as antiaéreas ou os sistemas de guerra electrónica russa se tenham á adaptado e os esteja a abater em grande número, os alvos acabam por ser atingidos, com maior ou menor severidade.