Esta entrevista, cuja audiência, além do Youtube e do X, soma ainda largos milhões de visualizações nas outras redes sociais onde continua, seis dias depois, a bater recordes, foi um sucesso para os objectivos russos porque permitiu ao Kremlin fazer chegar ao ocidente, sem filtros ou censura, provavelmente pela primeira vez em quase dois anos de guerra, a sua versão do contexto e génese da guerra na Ucrânia.

Tal como na Rússia, os media ocidentais de maior visibilidade, desde logo as grandes cadeias de televisão, chegam com o afunilamento da censura e da vigilância russa, no ocidente, os media russos em línguas estrangeiras, como a Russia Today (RT) foram barrados na Europa ocidental através de uma lei da censura aprovada pela Comissão Europeia,.

Esta decisão política que foi avançada pela presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, fez, por exemplo, voltar a Portugal a censura que tinha sido abolida há 50 anos com a revolução de 25 de Abril de 1974 que acabou com meio século de uma ditadura fascista, sem que se tivesse verificado qualquer crítica entre os jornalistas daquele país europeu.

Este contexto de aperto aos media russos está, provavelmente, por detrás do estrondoso sucesso da entrevista de Tucker Carlson, o jornalista que foi recentemente despedido da Fox News, a Vladimir Putin.

Carlson é conhecido pela suas posições conservadoras e próximas da extrema-direita norte-americana encabeçada por Donald Trump, antigo Presidente e candidato republicano às eleições Presidenciais de Novembro deste ano nos EUA, obtendo, naturalmente, forte penetração nos americanos mais conservadores, o que não passou desapercebido ao igualmente conservador Elon Musk, o dono do X (Twitter) que lhe garantiu que a sua entrevista a Putin não seria censurada nesta rede social.

Para todos os efeitos, as duas horas em que Carlson esteve sentado frente a frente com Putin, dificilmente poderão ser consideradas uma entrevista, porque o chefe do Kremlin, a jogar em casa, falou do que lhe apeteceu, incluindo quase meia hora dedicada à história da Rússia e da Ucrânia, onde o Presidente russo procurou justificar uma parte dos direitos de Moscovo sobre parte dos territórios actuais da Ucrânia.

Sabendo disso, da forma como esta conversa de amigos serviu os seus interesses, que era chegar com a sua voz ao ocidente, limpa de quaisquer limitações, onde o olhar russo apenas chega, neste dois anos de guerra, retalhado pela propaganda ocidental anti-russa, e pouco mais, ou com escassas excepções, Vladimir Putin sentiu-se obrigado a vir a publico, nesta quinta-feira, defender o seu entrevistador... fofinho.

Numa entrevista curta a um canal de televisão russo, Putin disse-se surpreendido pela forma como Tucker Carlson o desarmou ao mudar a sua estratégia habitual nas entrevistas deste género.

Agradecendo a entrevista de duas horas, como nota o britânico The Guardian, Putin disse que o americano, que muitos não consideram um jornalista mas sim um homem do entretenimento televisivo, o destemperou ao ter optado por uma entrevista calma, ponderada, sem o fervilhar permanente das interrupções, quando ele se tinha preparado para as conhecidas questões afiadas e agressivas.

"Para ser sincero, estava à espera que ele (Tucker Carlson) se comportasse de forma agressiva e tentasse não me deixar completar uma resposta, com uma bateria de perguntas, mas o que aconteceu foi o contrário e eu não estava preparado para essa estratégia...", disse Putin.

Que admitiu que, embora seja difícil de perceber esta lógica, porque o que aconteceu de facto foi que Putin teve o tempo de antena que queria, chegando ao ocidente sem filtros ou afunilamentos editoriais, o que mais lhe servia eram as tais questões afiadas e agressivas, porque para isso se tinha preparado e gostaria de ter a oportunidade, sem parecer forçado, de também usar uma certa agressividade ao abordar alguns dos temas.

Esta entrevista deixa, todavia, ainda em saliência outro aspecto que também retira chão aos jornalistas e aos media ocidentais, até porque de todos, ou quase todos, Tucker Carlson recebeu duras críticas por ter ousado conceder aquele precioso tempo de antena ao senhor do Kremlin, quando entrevistar o Presidente de um dos países que protagoniza a guerra mais mediática em décadas na Europa seria, naturalmente, o mais desejado momento para qualquer jornalista das grandes plataformas europeias e norte-americanas.

E foi isso que Carlson fez, com precisão de "sniper", acertar no alvo mais exposto das fragilidades dos media ocidentais; por um lado, pela forma como se colocaram editorialmente ao lado de Kiev, um dos contendores no conflito do leste europeu, segundo Moscovo, ignorando erradamente o contexto histórico entre a Rússia e a Ucrânia; e, por outro, expor o facto de entrevistar o Presidente russo ser, naturalmente, uma prioridade para qualquer jornalista, mesmo que o não fosse para a propaganda "oficial" norte-americana e europeia.

Fez ainda outra coisa: no ocidente, os media "mainstream" em nada se demarcam dos russos, colocando-se no terreno como parte do conflito informacional, sendo que, tanto de um lado como do outro algumas excepções resistiram, com maior ou menor sucesso, desde logo, do lado russo, a Russia Today, que, apesar de uma evidente inclinação pró-russa, mantém sempre a atenção na versão ocidental para os factos relatados, e do lado ocidental, as agências de notícias também foram tendo esse cuidado mínimo.

Embora, nestas declarações sobre a entrevista a Tucker Carlson, Putin tenha vindo agora dizer que foi a primeira vez que lhe foi proporcionada a oportunidade de se dirigir ao mundo ocidental de forma directa, no passado recente, o mesmo Putin tenha sublinhado, mais que uma vez, que nunca teve vontade de falar com os media ocidentais devido à manipulação das suas palavras, o que, claramente, nesta conversa com o jornalista americano, estava garantido que não sucederia.

Mesmo assim, Vladimir Putin disse agora que não ficou "totalmente satisfeito com a entrevista" que lhe abou caminho para ser visto e ouvido por mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo apenas nas primeiras 72 horas após a sua emissão online, a partir do canal pessoal de Tucker Carlson (TCN), fazendo desta, provavelmente, uma das mais vistas em todo o mundo e desde sempre, até porque ainda hoje, uma semana depois, esta continua a somar visualizações, "likes" e partilhas.

Esta entrevista tem outro lado de extrema relevância no que diz respeito ao desenrolar da guerra na Ucrânia, e ao seu desfecho, porque nela Putin disse ao mundo ocidental que Moscovo não só está disponível para negociar como quer negociar uma saída para a guerra no leste europeu.

Com isso, os os lideres ocidentais, com as suas sociedades cada vez mais cansadas da guerra e das consequências económicas, depois de ouvirem Putin a lançar este apelo às negociações, podem ter mais espaço para desbravar esse caminho, impondo a Kiev o caminho da mesa para conversar em vez da estrada da morte das trincheiras, onde uma vitória sobre os russos é cada vez mais uma impossibilidade, como defendem cada vez mais analistas, alegando que foi o Kremlin que levantou a "bandeira branca" primeiro.

E isso seria uma possível saída airosa para todas as partes envolvidas nesta guerra, a Federação Russa, a Ucrânia e a NATO, enquanto parte fundamental neste conflito porque sem as suas armas e o seu dinheiro, a guerra já teria acabado há muito tempo.

Alias, como Vladimir Putin voltou a insistir nesta entrevista, duas semanas após a invasão de 24 de Fevereiro de 2022, russos e ucranianos tinham chegado a um acordo, em Istambul, na Turquia, que cessaria as hostilidades, havendo mesmo um "draft" assinado pelos dois lados, mas que foi atirado para o lixo por Kiev depois da já famosa visita-tsunami do então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, à capital ucraniana.

Nessa visita, em Março, e depois em Abril, de 2022, Boris Johnson encostou o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, à parede e obrigou-o a rasgar o pré-acordo com os russos, prometendo-lhe o apoio ilimitado e por quanto tempo for preciso, para derrotar os russos no campo de batalha, ao mesmo tempo que logo ali teria início uma vaga de sanções económicas norte-americanas e europeias contra a Rússia.

A escassos nove dias de cumprir dois anos de guerra, todas as premissas de Boris Johnson falharam. Nem a Rússia foi derrotada no campo de batalha, apesar dos mais de 200 mil milhões de dólares em armas fornecidas a Kiev pelos aliados da NATO, nem as sanções, as mais violentas aplicadas a um país de sempre, vergaram a economia russa.

Pelo contrário, os mais recentes indicadores do FMI apontam para um crescimento na Rússia largamente superior ao dos países europeus, desde logo a Alemanha, que está na fronteira da recessão depois de ter desligado os gasodutos da Sibéria com que alimentava a sua indústria gigantesca a preços de amigo.

Como dizia o antigo Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, "é a economia, estúpido!". E também agora pode ser a economia a empurrar as partes para a mesa das negociações, afastando-os das trincheiras onde continuam a morrer milhares de homens e mulheres de um e do outro lado.

Subjacente a esta entrevista ficou ainda a percepção de Putin sobre o momento político nos EUA, mesmo sem o abordar directamente, porque se, como as sondagens o indicam, de forma pronunciada, o candidato republicano, Donald Trump, ganhar as eleições e voltar à Casa Branca, como vários media ocidentais já noticiaram, este vai impor a Kiev cedências a Moscovo para terminar esta guerra, tendo meso dito que o fará em 24 horas.

Ora, se os ucranianos deixarem as coisas andar até esse momento, a sua capacidade negocial com o Kremlin vai-se reduzir até ao ponto em que as coordenadas para um acordo de paz serão, quase integralmente, definidas por Vladimir Putin.

Isto, num momento da guerra em que, por diluição substantiva dos apoios ocidentais, especialmente americanos, a Ucrânia, como o novo CEMGFA, general Alexsandr Syrsky, veio admitir de forma veemente, enfrenta uma situação muito difícil" e "muito tensa" na li há da frente, onde a Rússia soma ganhos graças à sua superioridade material e em capacidade de recrutamento.

Ao mesmo tempo, as redes sociais, inclusive ucranianas, estão a mostrar uma crescente revolta popular contra as equipas de recrutamento forçado, havendo mesmo situações de confronto violento, além das crescentes manifestações de mulheres a exigir que os seus filhos e maridos e irmãos não sejam enviados para a linha da frente.