Terminei a conversa anterior manifestando a minha opinião de que a solução do problema alimentar de Angola não pode passar, no curto, e talvez no médio prazo, por modelos semelhantes ao do agronegócio brasileiro ou das grandes plantações seguidos por vários países africanos. Por não termos um empresariado suficientemente numeroso e desenvolvido, nem um ambiente de negócios atractivo para o investimento estrangeiro, como o demonstra o insignificante volume de investimentos nos últimos sete anos, nem termos instituições capazes de orientar e liderar um processo tão exigente.
A solução, na minha óptica, e por razões não apenas económicas, mas também políticas e sociais, passa pelo desenvolvimento estrutural da agricultura familiar. E o que significa isso?
Primeiro que tudo, enfrentar o grande desafio que aflige a agricultura familiar desde que se iniciou a corrida à terra com propósitos empresariais, ampliada a partir de 1961, provocando a redução drástica da área média das suas explorações, que de meados dos anos 60 passou de 8,9 hectares para 3,9. Esse facto, comprovado e revelado pela Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola (MIAA), provocou, por sua vez, a redução da fertilidade natural dos solos e, consequentemente, da produtividade da terra e da produção, pois os pousios, isto é, as terras em repouso, diminuíram de 3 hectares para 1,2 hectares em média. Como se a injustiça fosse pouca, a MIAA mostrou que os empresários apenas utilizavam 11% das áreas concedidas. Em regiões de produção de café, essa política favoreceu o apoio dos camponeses à guerrilha.
Quando se iniciou nova corrida às terras, no início da década de 90, os camponeses angolanos perceberam que voltavam a enfrentar os desafios de outrora. O Recenseamento Agropecuário e de Pescas (RAPP), dado a conhecer em 2022, revelou uma fotografia incómoda para os Executivos angolanos. A área média das explorações familiares é agora de apenas 2,34 hectares, ou seja, diminuiu em 40%. Dessa área são cultivados anualmente, sempre em média, 97%, ficando, pois, praticamente sem pousios, e com isso sem possibilidade de recuperação dos níveis de fertilidade anteriores. Quase sem adubos químicos e com baixos níveis de utilização de estrume, a carência de pousios condena tais explorações à falência a prazo, pois não só inviabiliza aumentos de produtividade, como tendencialmente provocará reduções dessa mesma produtividade. Do mesmo modo, a limitadíssima área de baldios sugere problemas acrescidos para o uso de outros recursos naturais, como a lenha e outros bens recolectáveis. Uma situação propiciadora de um desastre social, que na realidade já começou.
Angola tem um consumo de adubos per capita inferior a três quilos, o que contrasta, de acordo com a FAO, com o consumo mundial, que é de 62, e com o da África Subsaariana, que é de oito. Poderia ser uma oportunidade para a adopção de sistemas modernos de agricultura, baseados na associação agricultura-pecuária-floresta, cada vez mais em voga em países como, por exemplo, o Brasil, onde as preocupações ambientais estão em crescimento devido às preocupações internacionais com o desenvolvimento sustentável.
Esta abordagem compagina-se com outros desafios que se colocam ao desenvolvimento estrutural da agricultura familiar. Em primeiro lugar, o dos recursos humanos. O Ministério da Agricultura reclama um défice de oito mil técnicos e o Plano 2023-2027 apenas contempla a admissão de dois mil. A maior parte dos técnicos existentes estão desmotivados, entre outras razões, por baixíssimos salários e falta de condições de trabalho e de vida nos municípios, pelo que a maior parte dos recém-formados opta por outros empregos, principalmente como professores.
Em segundo lugar, e estreitamente ligado ao anterior, o do desenvolvimento institucional inclusivo, de modo a promover a descentralização e a desconcentração dos serviços, a coordenação entre ministérios e entre instituições e serviços, o uso de métodos de trabalho alinhados com as boas práticas internacionais, o combate efectivo à corrupção e à burocracia.
Em terceiro lugar, e novamente ligado aos dois anteriores, o do conhecimento, tanto científico como endógeno, ou seja, dos saberes acumulados ao longo dos tempos, quer do que se faz no mundo, em África ou em outros países comparáveis, quer sobre a realidade angolana, tanto do ponto de vista dos agricultores e das comunidades onde estes estão inseridos, como dos sistemas agrários e pecuários praticados. Uma aposta que deveria centrar-se no reforço das capacidades dos institutos de investigação e de extensão, visando o aumento dos níveis de produtividade da terra e do trabalho.
Em quarto lugar o desafio da mecanização. Os governantes angolanos acenam, em sintonia com o modelo vigente, com a tractorização da agricultura familiar de modo demagógico. Ainda que houvesse dinheiro - e não há - não temos organização, nem logística, nem recursos humanos para essa tractorização nas próximas décadas. Existem alternativas a essa aposta, domésticas com recurso à tracção animal, externas com a chamada low tech muito usada em países asiáticos.
Em quinto lugar, os recursos financeiros. Já denunciei aqui que os compromissos de Maputo e de Malabo, sobre a dotação do mínimo de 10% das despesas dos orçamentos anuais dos países africanos para assegurar o desenvolvimento agrário do continente, tiveram como resposta, em Angola, uma média abaixo de 2% ao longo de vinte anos. Considerando a difícil situação financeira, mesmo em termos perspectivos, este desafio terá de ser encarado com uma aposta nos recursos internos, alinhada com o enfrentamento dos desafios anteriores. Se o cenário não for alterado, esperam-nos tempos muito difíceis.
PS - O documentário "Mário" foi finalmente exibido em Luanda, com a presença do seu realizador Billy Woodberry. Na sala, nenhum dirigente do MPLA. Não será com a atribuição do nome do seu primeiro Presidente a um dos muitos "Dubais Hospitalares", ou com a sua condecoração póstuma, que o MPLA se redimirá da vergonha, bem expressa na fita, da negação da concessão de um passaporte a Mário Pinto de Andrade, um dos obreiros da independência. O que terá prejudicado os esforços para o seu tratamento médico em Londres, podendo assim ter permitido alongar o seu tempo de vida. Como naquele tempo, o MPLA continua hoje a impedir uma verdadeira reconciliação entre os angolanos.
Conversa na Mulemba
A agricultura angolana e seus inimigos II (entre os quais os sucessivos executivos, desde há muito)
Não é de hoje a "inimizade" dos Executivos angolanos em relação à agricultura. Durante a guerra, manifestei com insistência a opinião de que não era totalmente verdadeiro que a agricultura não se desenvolvia por causa da guerra. O abandono da agricultura e dos camponeses permitiu o mar onde a guerrilha passou a nadar, pois os outrora aliados da revolução não tinham razões para defender um Estado que os ignorava. A favor dessa opinião, invocava a experiência durante a luta de libertação, quando o governo português implementou projectos de extensão rural para impedir a chegada da guerrilha ao Planalto Central, e de promoção de cooperativas no Uíge para dar corpo à sua política de promoção económica e social de contenção da guerrilha a Norte. Tais projectos, apesar do contexto político colonial, representaram, na óptica dos portugueses, experiências de relativo sucesso em termos de curto prazo, embora se soubesse que o colonialismo estava estrategicamente com os dias contados.
