Mesmo porque Márquez nunca escondeu a sua incapacidade para escrever sem cometer erros ortográficos.

O que o tornou uma das grandes referências da literatura universal foi certamente essa capacidade impar e prodigiosa de misturar mito e realidade, vida e ficção, mas sobretudo de imbricar trajectórias pessoais no tecido confuso e agitado da vida política de todo um continente, a América Latina.

García Marquez, ao contrário do que muita gente pensa, não foi o inventor do género literário a que a sua obra é associada, o realismo mágico. Já havia um movimento sólido, a que se chamava precisamente realismo mágico, em que pontificavam nomes como o do mexicano Juan Rulfo, com o seu magnífico "Pedro Páramo".

Mas a publicação de "Cem anos de solidão" foi uma coisa completamente diferente que haveria de mudar não apenas a literatura da América Latina, mas a própria literatura universal. Era o realismo mágico que saía dos meros confins da criatividade poética e encontrava-se com a política e o destino de todo um continente.

Talvez, também, porque começasse com aquela frase mágica, difícil de esquecer ("Muitos anos mais tarde, o Coronel Aureliano Buendía..."), que dava todo um tom de sonho e sobre-realidade que respira todo a saga da família Buendía. Esse livro foi aclamado como o exemplo do que uma mente prodigiosamente criativa podia fazer.

Mas isso foi só até a publicação, muitas décadas depois, da sua autobiografia "Viver para contar". O que conta García Marquez neste livro é o impulso, ou inspiração para escrever "Cem anos de solidão" numa altura em que depois da publicação de alguns exercícios literários já tinha dado como seca a sua fonte de inspiração.

Mas foi a viagem a Barranquilla, na Colombia, nos anos 60, em que lhe apareceu não apenas aquela primeira frase, mas que lhe deu a oportunidade de revisitar muitas pessoas e sítios que mais tarde apareceriam no romance.

Quase depois de dois anos de escrita, período de grande penúria (em que Marquez quase se matou e à sua família à fome) "Cem anos de solidão" saía finalmente a público, com aclamação geral dos leitores e da crítica.

Com a fama mundial que tal livro lhe granjeou, García Márquez haveria então de ter contacto com figuras que nos seus livros são autênticos estudos, como generais e ditadores. Foi próximo de Fidel Castro, por exemplo, e as histórias que escreveu sobre os cubanos em Angola, uma delas publicadas no conceituado Washington Post, foram autorizadas pelo próprio presidente cubano. Li as reportagens de Marquez (que encontrei quase por acaso quando há quase 20 anos folheava livros numa livraria de Vigo, em Espanha, e dei com a tal colecção de trabalhos jornalísticos que se chamava "Por la Libre: obra periodistica") sobre os cubanos em Angola e já escrevi sobre isso (no meu livro de crónicas, "Poligrafia: das Páginas de Jornais Angolanos").

Uma das coisas que me passou pela cabeça ao ler tal livro é que Garcia Marquez poderia ter escrito aqueles textos sem mesmo visitar Angola. Mas há entretanto aqueles momentos, quando, por exemplo, o autor é recebido pelo presidente da república, na altura Agostinho Neto.

A descrição que faz do presidente angolano é intrigante, porque não se sabe o quanto aquilo tem de vida e o quanto tem de mera escrita.

Neto aparece como um homem só e frágil, o que é um recurso em muito do que García Márquez escreveu sobre os homens de poder.

Mas fica-se sem saber se aquilo correspondia ao que Márquez achava que era uma consequência do poder, ou o efeito do poder sobre o indivíduo, ou, se, de alguma forma, Neto foi a confirmação de alguma coisa, ou o quadro que lhe serviria para as muitas descrições que apareceriam nas suas obras posteriores. Só depois, já nos anos 80, voltou García Márquez a escrever outros romances, como "Amor em tempos de Cólera", "O General no seu Labirinto" e "Crónica de uma morte anunciada" que em nada ficariam a dever a "Cem anos de solidão".

Mais modestos, menos ambiciosos, haveriam pelo menos tirar-lhe a estigma de escritor de simplesmente uma grande obra. Em grande partes desses livros, há um grande impulso autobiográfico. E isso acontece mesmo em livros, em o "O General no seu Labirinto", que foram lidos como estudos sobre as ditaduras da América Latina, mas que ele próprio disse que era autobiográfico.

Márquez, ao contrário de muitos outros escritores, sempre mostrou que não existe escrita sem vida, e que, por vezes, a vida pode mesmo ser apenas um recurso literário, ou um pretexto para se escrever. Fiquei, pelo menos com essa impressão ao acabar de ler a sua autobiografia "Viver para contar": que uma das poucas razões pelas quais vale a pena viver é para podermos contar a vida depois.