A cada ano que passa, os discursos carregados de apelos patrióticos são mais incisivos, dando a clara impressão de que homens e mulheres que suam as camisolas em arenas desportivas são antipatriotas. As insistentes convocatórias para o amor à Pátria sugerem, no mínimo, que, neste capítulo, a generalidade dos atletas angolanos apresenta deficit assustador. Porque, se os dirigentes que passam a vida a fazer pedidos pungentes nesse sentido tivessem vislumbrado patriotismo q.b. em atletas, não haveria necessidade de constantes invocações.
Ultimamente, o desporto nacional adoptou um slogan muito cantado nas trincheiras de guerra, quando o Governo estava a braços com uma guerrilha aliada ao mais hediondo dos regimes, o Apartheid. Dizia o slogan: "Aos seus filhos, a Pátria não implora, ordena". Impactante do ponto de vista emocional, sobretudo no contexto em que foi lançado, este bordão político continua actual. Efectivamente, pelo País não deveria ser necessário que alguém mendigasse esforço a quem quer que seja, inclusive a atletas.
Também não é raro ouvir de dirigentes desportivos acusações de "mercenarismo" por parte de atletas e técnicos. Muitas reivindicações, às vezes até de condições de trabalho, visando performances melhores, são rotuladas de desprovidas de sentido patriótico. Já aconteceu uma selecção nacional não dispor de água para beber em dias de treino e a reclamação do técnico ser interpretada como lesiva aos supremos interesses da Nação. Os dirigentes que, na altura, se foram aos arames sabem bem que não se trata de uma questão filosófica, mas de uma questão fisiológica. Organismos submetidos a grande esforço físico demandam reposição dos níveis de elementos orgânicos providos pela água. É tão elementar quanto isso.
Para sabermos a área de um dado espaço territorial ou a profundidade de um buraco, precisamos de uma fita métrica. Se quisermos saber a temperatura do nosso corpo, usamos um termómetro. Para sabermos quanto pesa um objecto, basta fazermos recurso a uma balança. Portanto, há um conjunto de dispositivos usados para indicar, com precisão, diversos tipos de medida. A ciência, porém, ainda não logrou inventar um engenho capaz de medir (com maior ou menor exactidão) o grau de patriotismo de uma pessoa. Isto, apesar dos seus impressionantes avanços. Do modo, porém, como alguns políticos nos seus emocionados discursos pós-título apelam ao patriotismo de desportistas, dá a impressão de que dispõem de tal dispositivo e até já mediram o grau de patriotismo dos desportistas...
Ora, o patriotismo é um valor sentimental que se adquire desde tenra idade, começando quase sempre na escola primária, onde se ensina a importância dos símbolos nacionais e a devoção e o amor que devemos tributar à Pátria. Mas isso só funciona em países éticos e cuja acção governativa seja exemplo para os demais cidadãos. Angola não é propriamente um exemplo de boa governação e muito menos de ética. Logo, não é razoável que se peça mais patriotismo a desportistas que a outros profissionais. Afinal, os desportistas são, também, fruto de uma sociedade gangrenada por males como a corrupção e o nepotismo, o desprezo à meritocracia e a promoção da incompetência, a injustiça social e a fome (relativa ou não).
Angola tem "casa própria" no topo de rankings como o da corrupção. Não é uma "inquilina" qualquer que paga rendas e um dia pode abandonar a "casa". De acordo com o Índice de Percepção sobre a Corrupção, Angola é um dos países mais corruptos do mundo. No ranking de ambiente de Negócios também frequenta os lugares menos prestigiados, assim como no quesito mortalidade infantil, razão pela qual em 2017 era o segundo pior País do mundo para se ser criança.
Os atletas, tidos como mentecaptos pela soberba de muitos políticos e até de dirigentes desportivos (principalmente os que caíram de para-quedas no meio), são minimamente informados. Mesmo que a media pública faça todos os esforços e mais alguns para, à martelada, incluir Angola entre as nações mais prósperas do mundo, atletas (e não só) sabem o que a casa gasta. Sabem que a maior parte dos políticos defenestrados dos seus postos prefere viver em Portugal; sabem que muitos desses políticos morrem em Portugal em busca de assistência médica de qualidade que Angola não oferece; sabem que o "sonho da casa própria" de governantes e de servidores do escalão intermédio do aparelho do Estado radica em Portugal; sabem que a maior parte dos políticos não tem filhos em estabelecimentos de ensino angolano; sabem que o anterior Presidente da República preferiu pôr filhos a estudar em escolas portuguesas e francesas [lá não leccionam certamente História de Angola]...
Alguns desportistas, certamente, sabem que, entre 2011 e 2014, o preço médio do barril de petróleo vendido por Angola foi de USD 107,6. Se nesse período a produção média era de 1,6 milhão de barris de petróleo por dia, o valor bruto obtido andava em torno dos USD 250 bilhões. E também sabem que parte desse dinheiro foi parar em algibeiras escusas, investido ou entesourado em Portugal. Ou que serviu para adquirir futilidades como calçados de marca Louboutin ou relógios de marca Franck Muller.
Posto isto, é razoável questionar: quem tem esse manancial de informação pode ser patriota? É óbvio que uns ainda conseguem sê-lo. Mas não é menos óbvio que a maioria seguramente que não. E isto pela simples razão de que a generalidade dos cidadãos se revê na governação. Ou seja, se tiverem um governo ético e probo, grande parte dos cidadãos seguirá logicamente pelo mesmo caminho. Por isso, é até insultuoso políticos pedirem a desportistas esforços patrióticos em quadra. O que muitos atletas têm feito pelo País não é, nem de perto, nem remotamente, comparado com o que fazem políticos. Mais: os desportistas só querem ganhar a vida de forma honesta, em vez de meterem a mão onde não devem.