Como disse Mário Pinto de Andrade, ""a lúmpen-aristocracia se, por um lado, vivia dos seus pergaminhos, por outro veiculava aos seus descendentes uma consciência nativista. Havia uma ambivalência, um certo orgulho de ter sido parte integrante dessa vida no meio do colonizador e, ao mesmo tempo, de ter estado na vanguarda de uma luta contra as discriminações de que foram sendo vítimas, no seio da problemática de qualquer colonialismo.""
Desta feita, o status social, associado à cultuação de valores, do saber e da promoção social subjazeram ao papel histórico da lúmpen-aristocracia e seus descendentes na árvore genealógica da formação, liderança e actuação dos movimentos de libertação nacional. Como não podia deixar de ser, este cenário foi favorecido e impulsionado pelo ventos nacionalistas de mudança que, no pós-II guerra mundial, passaram a soprar no mundo - particularmente em África - como enunciado, em Fevereiro de 1960, por Harold MacMillan no seu famoso discurso Ventos de Mudança.
As realizações e o impacto da lúmpen-aristocracia e descendentes, seja na criação da consciência da angolanidade, seja na construção da nacionalidade angolana foram, sem dúvida, de natureza positiva, progressista e nacionalista. De tal forma que, a partir da década de 1950, mercê do empreendendorismo e activismo político-diplomáticos, figuras tutelares de descendência lúmpen-aristocrática contribuíram significativamente para o lançamento do gérmen das relações internacionais de Angola, que acabaria por moldar a configuração da política externa do país e potenciar a sua capacidade geo-política, no pós-independência.
A segunda dimensão reporta-se aos efervescentes anos de 1974 a 1976 e prende-se com o lúmpen-proletariado. No contexto de guerra fria da época, que se espelhou na nossa geografia política durante décadas a fio, e sob a névoa da desunião orgânica na troika de libertação nacional, Angola testemunhou, naqueles anos, uma grande onda de mobilização de massas e de galvanização da sociedade, à semelhança das Revoluções Francesa (Julho de 1789) e Russa (Outubro de 1917).
O lúmpen-proletariado foi um dos segmentos populacionais mais galvanizados e enquadrados no afã de que vingasse o então em voga processo
revolucionário de matriz marxista-leninista. Em rigor, Angola serviu de teste à teoria do potencial revolucionário do lúmpen-proletariado, pontificada, no século XX, por intelectuais da estirpe do germânico-americano Herbert Marcuse da Escola de Frankfurt e do martinicano Frantz Fanon.
A interacção e cumplicidade dialécticas com os actores político-militares, mormente na província de Luanda, levaram a que, na fase derradeira da descolonização, a participação fulgurante do lúmpen-proletariado fosse decisiva para a proclamação e preservação da independência nacional. Consequentemente, Angola tornou-se um baluarte para, como referiu Agostinho Neto na I reunião de embaixadores (Gabela, 15 de Agosto de 1978), ""dar uma contribuição positiva e activa para libertação política dos outros povos,"" designadamente da Namíbia, Zimbabwe e África do Sul.
Daí que a evocação do lúmpen-proletariado não seja ao acaso. Esteve à altura dos desafios de contribuir para o cravamento do último prego do caixão do colonialismo e da invasão estrangeira a norte e sul de Angola, fazendo, destarte, jus à índole positiva, progressista, nacionalista e patriótica das suas realizações. O simbolismo desta evocação decorre também do facto de, em 2021-2022, assinalar-se 170 anos de O 18° Brumário de Luís Bonaparte, preciosidade ensaística em que Karl Marx enriqueceu o seu pensamento sobre o lúmpen-proletariado.
A terceira e última dimensão tem a ver com a lúmpen-burguesia, cujo conceito é atribuído ao sociólogo americano Wright Mills, secundado e enriquecido, entre outros, pelo economista belga Ernest Mandel e pelo germânico-americano André Gunder Frank. Desde logo, impõe-se uma branda advertência à diferença, se não mesmo distinção, entre lúmpen- burguesia e burguesia, classes sociais que não são sinónimo, não devendo, por isso, ser confundidas uma com a outra.
Ora, é lugar-comum o papel propulsor das burguesias no desenvolvimento e prosperidade das sociedades, como, de resto, tem acontecido progressiva e universalmente nos últimos 200 anos. Este facto terá decerto contribuído para a sagração e universalização do axioma ""ser rico não é pecado,"" verbalizado por Deng Xiaoping na entrevista que, em 1986, concedeu à cadeia televisiva americana CBS. Neste sentido, não surpreende pois a asserção da economista americana Deirdre McCloskey da Escola de Chicago para quem ""os países bem-sucedidos são burgueses [capitalistas]."" Contudo, vale dizer que a prosperidade comum e o desenvolvimento económico-social da China, ancorados no sistema socialista com características chinesas, sugerem a relativização do alcandoramento do sistema capitalista.
Diferentemente da burguesia, a lúmpen-burguesia, pelo mundo afora e em Angola em particular, tem-se, à vista desarmada, afigurado como degenerada, predatória e anti-patriótica, detendo como marcas de água a corrupção, a impunidade e os crimes económico-financeiros, que se
cometem à sombra e em detrimento do Estado e da paz positiva. Por maioria de razão, o comportamento da lúmpen-burguesia quebrou claramente o continuum de positividade que caracterizou predominantemente a lúmpen- aristocracia e o lúmpen-proletariado.
A génese, o percurso e as consequências assombrosas das acções da lúmpen-burguesia conduzem-nos à interpelação do Discurso de Agostinho Neto sobre a Luta de Classes em Angola (Julho de 1978), bem como das Reflexões do Comandante Jika sobre a Luta de Libertação Nacional (Outubro de 1971). Ambos abordaram questões pertinentes e atinentes à disciplina, ao comportamento e desvios ideológicos da pequena burguesia, e à necessidade de tomada de medidas imediatas e enérgicas para o seu combate.
Não tendo sido ""revolucionarizada"" como Jika aventou textualmente, a pequena burguesia ter-se-á, na generalidade (salvaguardadas as excepções), metamorfoseado e evolucionado para o estádio de lúmpen-burguesia. Em boa verdade, o descaso consentido pelo Estado vis-à-vis às acções, omissões e pactos de silêncio da lúmpen-burguesia, traduziu-se num epítome da realidade de encenações, símbolos e simulacros da pós-modernidade, que o sociólogo francês Jean Baudrillard expende em Simulacres et Simulation (1981).
De realçar que, ainda no final da década de 1970, Agostinho Neto colocou profeticamente o dedo na ferida quando disse: "onde os militantes [os cidadãos] não estão submetidos a uma disciplina rígida, onde os dirigentes não se guiam por princípios... penetra a anarquia. Aí o inimigo infiltra-se mais facilmente e em vez de independência teremos neocolonialismo ou um equilíbrio instável entre o progresso e a reacção; entre a dependência e a independência. Nós não queremos isso! Queremos a independência completa.""
Com estas palavras, Agostinho Neto evidenciou não só a sua inquietação com a escassez de ordem e disciplina, mas também a convicção do entrelaçamento do trinómio: disciplina, ordem e progresso. Aliás, essa convicção compagina-se com o pensamento do filosófo francês Auguste Comte, para quem: ""a ordem constitui sempre a condição fundamental para o progresso; e, reciprocamente, o progresso torna-se o objectivo necessário da ordem"" (in Discours sur l"Esprit Positif, 1842).
Ao ter, por um lado, reconhecido a corrupção como o segundo principal mal que afectava e afecta a sociedade angolana depois da guerra; e, por outro lado, exortado os seus correligionários partidários a assumirem uma atitude crítica e auto-crítica e a comprometerem-se com a tolerância zero à corrupção, José Eduardo dos Santos deu, em Novembro de 2009, o pontapé de saída da cruzada contra a corrupção.
Dito isto, a administração Lourenço, admitamo-lo, optou pela oposição à prática do ""deserto do real,"" como diria Baudrillard. Ou seja, pegou o touro
pelos cornos e tem estado progressivamente a conferir visibilidade e fôlego à maratona (susceptível de ser perfectível como acontece com qualquer realização humana) para a extirpação do mal da corrupção e da impunidade que, nas palavras de João Lourenço, ameaça seriamente os alicerces da nossa sociedade. A ubiquidade da narrativa para a não contemporização com a corrupção, conjugada com a crescente consciencialização social sobre a perniciosidade deste mal, encerra o valor imperial atribuído pelo Estado angolano à esta causa nobre e patriótica. Ademais, complementa na perfeição a tese de Joe Biden de que ""no século XXI, a corrupção não é nada menos do que uma ameaça à segurança nacional,"" se não mesmo à segurança mundial, devido à sua transnacionalidade.
Sendo o combate à corrupção um dos eixos prioritários da governação em Angola, as desafiantes circunstâncias para o seu progresso interpelam o estudo comparado e o aprofundamento da cooperação com países com impecáveis pergaminhos do traçado e matriz de anti-corrupção. Dentre eles, sobressaem as nações escandinavas e certos países da Ásia-Pacífico, sendo de destacar a Singapura, país em que Deng Xiaoping se inspirou para conceber e liderar as reformas que colocaram a China na senda do desenvolvimento e da prosperidade.
É neste contexto que a região da Ásia-Pacífico vem-se catapultando para o centro de gravidade geo-estratégico e geo-económico do mundo. Sabendo- se o que se sabe hoje da trajectória da Ásia nos últimos 50 anos, é justo reconhecer quão visionário e intuitivo foi Agostinho Neto ao ter enfatizado, no conclave de embaixadores de 1978, a necessidade de ""uma maior aproximação com os países asiáticos e de estarmos sempre ao lado do que se desenvolve e não ao lado da decadência."" Agostinho Neto não podia estar mais certo, uma vez que na Ásia-Pacífico abundaram/abundam países e líderes de fascínio e de emulação, no sentido e alcance em que se desenvolveram/desenvolvem e prosperaram/prosperam de forma sustentada e inclusiva.
Um exemplo frisante é a Malásia. Sob a liderança de Mahathir Mohamad, em pouco mais de duas décadas, deixou de ser um remanso agrícola e transformou-se numa potência industrial, seguindo as pegadas do modelo do Japão.
Uma outra referência incontornável no panteão universal de líderes transformadores é o singapurense Lee Kuan Yew, cuja proeza governativa decorreu também da sua desarmante convicção, por ele racionalizada nos seguintes termos: ""muito embora lamentávelmente, os seres humanos são inerentemente maldosos, pelo que devem ser travados nessa sua maldição. Podemos ter conquistado o espaço, mas não aprendemos a dominar as nossas próprias emoções e instintos primitivos de que necessitámos para a nossa sobrevivência na Idade da Pedra e não na Era Espacial... Sempre acreditei que a humanidade era tipo animal, embora a teoria Confuciana diga que ela
[a humanidade] pode ser melhorada. Não estou seguro que possa sê-lo, mas pode ser adestrada, pode ser disciplinada...""(in Lee Kuan Yew: the Grand Master"s Insights on China, the United States and the World, 2013).
Com efeito, a transformação da Singapura no oásis do primeiro mundo, localizado na região do terceiro mundo, assentou na disciplina, na educação, na meritocracia e no combate sem tréguas nem quartel contra a corrupção.
Oxalá que, com espírito de corpo, as elites pensantes, as elites dirigentes e as elites patrióticas de Angola (independentemente dos seus matizes políticos, sociais, culturais e religiosos) apreendam e se inspirem, com autenticidade e pendor analítico-crítico, no ethos das sociedades que, em outras latitudes e longitudes, já passaram a prova dos nove ao desfiamento da meada da lúmpen-burguesia, à cruzada contra a corrupção e impunidade, e ao desenvolvimento.
A adaptação e eventual harmonização de tal ethos com a realidade histórico-concreta de Angola revelar-se-iam uma mais-valia para a longa e transgeracional marcha pelo grande desígnio nacional. A saber: o desenvolvimento e a prosperidade comum e inclusiva, cuja relação causa- efeito com a segurança nacional é inquestionável.
Como escreveu o ex-presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, em The Essence of Security (1968), ""numa sociedade em modernização, segurança significa desenvolvimento. Segurança não é equipamento militar, embora possa estar incluído neste conceito; não é força militar, embora possa ser englobada; não é actividade militar tradicional, embora possa envolvê-la. Segurança é desenvolvimento e sem desenvolvimento não pode haver segurança.""
*Embaixador de Carreira