A cerca sanitária é um mecanismo largamente utilizado em situações epidémicas e, sobretudo, em pandemias, e a sua eficácia tem muito a ver com o modo de transmissão do agente etiológico. É particularmente indicada naqueles casos em que a transmissão aérea é expressiva, como é o caso do SARS-COV-2, e pode ser completamente ineficaz noutras situações, em que a transmissão se dá por contactos mais próximos, por exemplo a transmissão sexual. O vírus SARS-COV-2 revelou ter um potencial de propagação elevado, com índices de transmissibilidade (Rt) acima de 1 em muitos casos, facilitado pela sua transmissão aérea expressiva e pelo grande número de portadores assintomáticos. Com isso, o vírus afectou milhões de pessoas em todo o mundo e assumiu em pouco tempo o carácter pandémico que desencadeou uma crise sanitária de dimensão global e planetária.


O impacto económico e social da crise sanitária decorrente directamente da doença (elevado número de doentes e mortos em pouco tempo) e dos efeitos colaterais dos remédios instituídos em emergência (medidas de contenção) foi imediato e violento, e a história seguramente registou como um dos maiores abalos que a humanidade registou nos últimos séculos. A grande mobilidade que caracteriza o mundo globalizado, em que se transformou a "humanosfera" com reflexos evidentes em todas as demais esferas concêntricas do planeta, fez a diferença na velocidade de propagação do SARS-CoV-2. Não houve praticamente um pedaço de terra que se viu poupado pela pandemia, e as grandes concentrações populacionais urbanas com toda a gama de problemas sociais e ambientais que lhes são peculiares foram atingidas de modo particular. A dimensão global que assumiu a pandemia demonstrou a partida que a instauração de cercas sanitárias, como medida complementar era necessária sim, não no sentido de impedir em absoluto a propagação do vírus, mas, sobretudo, como uma barragem de contenção capaz de desacelerar a propagação que a manter a velocidade "natural" poderia levar ao colapso até os sistemas de saúde mais e melhor apurados. Portanto, as limitações da cerca sanitária são sobejamente conhecidas pelos agentes encarregadas de delinear e implementar medidas de controlo da pandemia quer a nível global como local.


Em África, de um modo geral, com excepções devidamente documentadas, o comportamento da pandemia foi surpreendentemente diverso das previsões catastróficas iniciais, sendo também diversas as razões geralmente apontadas para explicar este comportamento fora da curva da pandemia em África. Seguramente, há uma complexa e intrincada interacção de factores que derivou neste quadro que se pode considerar atípico. Estudos são necessários para escalpelizar e compreender este fenómeno que encobre por certo lições valiosas, úteis para abordar com eficácia a pandemia da Covid-19 no nosso contexto.
Em Angola, foram identificados os primeiros casos de Covid-19 em Março de 2020, casos importados de Portugal e, pelas previsões catastróficas da Organização Mundial da Saúde (OMS), justificaram-se as medidas radicais adoptadas, embora desfasadas do quadro epidemiológico concreto então prevalecente. A lógica que ditou estas medidas é a de que "prevenir é melhor que remediar" e, neste sentido, as medidas foram tomadas adequadamente. Ainda em Março, foi decretado o Estado de Emergência e no pacote de medidas do Estado de emergência instituíram-se as cercas sanitárias, nacional e à província de Luanda, então considerada epicentro da pandemia em Angola. Também algumas cercas sanitárias mais localizadas foram sendo circunstancialmente instituídas e devidamente justificadas, como são, por exemplo, os casos da cerca sanitária ao B.º Hoji-ya-Henda e ao município do Cazengo, na província do Kwanza-Norte, oportunamente levantadas.


A cerca sanitária nacional e a cerca a Luanda foram seguramente instrumentos úteis para o controlo da pandemia em Angola, mas, como demonstra o quadro evolutivo da pandemia no País, não impediram de todo a propagação do vírus. Não era também esse o seu objectivo, de resto. Com a cerca sanitária a Luanda, pretendia-se tão-somente conter uma propagação rápida da pandemia para as demais províncias, que poderia acarretar situações sanitárias críticas para estas circunscrições do território nacional. Não há dúvidas de que estes objectivos foram alcançados e, quanto a isso, os números oficiais que nos são diariamente oferecidos não deixam dúvidas. Mas hoje, a realidade epidemiológica é completamente diferente, pois já não se pode negar que existe circulação comunitária do vírus em todas as províncias, literalmente todas e é aqui que começam a emergir as incongruências relativas à manutenção prolongada da cerca sanitária a Luanda. O quadro epidemiológico hoje prevalecente torna completamente ineficaz a manutenção da cerca sanitária a Luanda, sobretudo, nas últimas semanas, depois que se ultrapassou o pico do que se convencionou chamar a 2ª vaga que os registos diários mostram de forma cristalina. O epicentro da pandemia em Angola deslocou-se parcialmente para o Leste e para o Sul, o que torna contraproducente a obstinada manutenção da cerca sanitária a Luanda. Para além de não oferecer benefícios sanitários por aí além, a cerca sanitária a Luanda tornou-se num elemento "economicida" relevante que derruba empregos, mata empresas, aumenta a pobreza e a miséria e, segundo o Prof. Carlos Rosado de Carvalho, é um dos factores que faz que a inflação em Luanda seja relativamente mais alta do que em outras províncias, sendo, por isso, um dos factores que contribuem para a redução da renda e do poder de compra dos luandenses. Sendo Luanda o centro económico, por excelência, de Angola as distorções profundas que a cerca sanitária introduz na economia em Luanda propagam-se rapidamente para outras províncias e são particularmente sentidas em províncias como a Lunda Norte e Lunda Sul onde a instabilidade dos preços é notória.


Ponderado o custo benefício, manter a cerca sanitária a Luanda hoje é uma medida de ratio duvidoso, no mínimo, e completamente desfasado daquilo que a ciência epidemiológica recomenda. A ampliação da testagem para identificar novos casos para o seu correcto manuseamento, os estudos visando a detecção e mapeamento das novas variantes do SARS-Cov-2, a sensibilização no sentido do uso correcto das máscaras, do distanciamento físico e da higienização frequente das mãos são medidas relativamente simples capazes de aportar mais benefícios no controlo da Covid-19 do que a onerosa manutenção da cerca sanitária a Luanda. Os esforços concentrados do Executivo, através da Comissão Interministerial especializada deveriam estar voltados para a vacinação, de forma a alcançar a breve trecho um índice de vacinados que garanta a chamada imunidade de grupo. Sabemos quão tortuosos são os caminhos para se alcançar este desiderato, tendo em conta que muitas variáveis desta equação ou mesmo inequação estão fora do controlo dos nossos países. São necessárias muitas lutas para que a vacina esteja disponível para todos no mundo. Os países desenvolvidos deveriam considerar que de nada valerá excluir do acesso à vacina as populações dos países em desenvolvimento, pois se não conseguirmos uma imunidade de grupo de dimensão global teremos no futuro surtos recorrentes de Covid-19 que comprometerão de algum modo o crescimento da economia mundial e o desenvolvimento. Por isso, a equidade na perspectiva global é um investimento importante para o futuro da humanidade. É aqui que Angola deve aplicar grande parte significativa do seu capital disponível.


A cerca sanitária a Luanda no presente contexto epidemiológico já não tem nenhuma sustentação científica.

*Deputado e Médico