O escritor conta a história de dois palhaços que se puseram a discutir e as pessoas paravam, divertidas, a vê-los. No início não os levavam a sério porque eram apenas dois palhaços discutindo. Quem é que leva a sério uma discussão de palhaços? Ninguém! E, entretanto, eles lá continuavam a dizer disparates. Foi assim naquele dia, depois no dia seguinte e os dois palhaços iam-se excedendo para a alegria dos presentes. Acreditando tratar-se de um espectáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio. No terceiro dia, os palhaços chegavam a vias de facto.
A miudagem divertia-se e ia imitando as chapadas e pontapés que os palhaços trocavam entre si. Nos dias seguintes, a violência aumentou de intensidade, um dos palhaços muniu-se de um pau e desferiu um golpe no adversário. O outro respondeu na mesma medida. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido e caiu morto. Levantou-se a confusão. Os ânimos divididos e exaltados e, aos poucos, dois campos de batalha foram-se criando, e vários grupos cruzavam pancadaria.
A vizinhança ouviu falar da confusão que se instalou em redor dos dois palhaços e achou graça. Curiosos, foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltaram com contraditórias e acaloradas versões, a vizinhança foi-se dividindo, e nalguns bairros começaram os conflitos. Lá para o vigésimo dia, começaram a escutar-se tiros cuja proveniência era desconhecida. Os disparos generalizaram-se, e corpos de pessoas começaram a acumular-se nas ruas. O terror passou a dominar toda a cidade e pouco depois começaram os massacres. No princípio do mês, todos os habitantes da cidade morreram. Todos, excepto os dois palhaços. Naquela manhã, cada um no seu canto se livrou das vestes, olharam-se cansados. Depois, levantaram-se e abraçaram-se e riram-se. De braço dado, recolheram as moedas, atravessaram a cidade destruída, tendo o cuidado de não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.
Este é o resumo de um texto com imensas alegorias sobre a estupidez de um conflito, de como apenas duas pessoas são suficientes para iniciar uma guerra. Dois palhaços iniciam uma discussão e os espectadores que, enquanto tentando entender a performance, entram num conflito. Muitas vezes, as pessoas não se apercebem, mas há em si uma tendência oculta para a violência e basta que surjam "palhaços" com uma boa encenação para avivar-lhes tais sentimentos. Só há palhaços porque existe uma plateia que lhes assiste e aplaude. Há uma plateia que vive e alimenta o espectáculo.
As pessoas não se apercebem de que estão perante encenações e deixam-se levar para um caminho de discussões e confrontações. Este é o perigo do combate cego, vazio e sem argumentos. Este texto de Mia Couto é uma ironia nua e crua a um sistema político e social vigente na altura. É também uma interessante abordagem do fenómeno político como forma de promoção do entretenimento e da violência.
A forma como as massas são manipuladas e entretidas em nome de actores políticos que pretendem a manutenção ou a alternância de poder. Vamos assistindo ao esvaziamento do debate, do discurso e estratégia política e o surgimento de "palhaços" que se vão guerreando entre si numa perfeita encenação para dividir a plateia, para explorar as suas emoções e levá-las a agir. E tudo isso é muito mais fácil numa sociedade de consumo, que, no campo da política, vai privilegiando o espectáculo, a violência e o entretenimento. A forte mediatização do espectáculo político ajuda a manter a plateia entretida. É fácil fazer-lhes pensar que tudo gira em torno do universo da política, que ela é a única forma de realização pessoal e social.
É que, no final das contas, são os "palhaços" que se riem de nós, são eles que exploram as nossas emoções e nos levam até aos extremos. Sem darmos conta, somos parte de uma perfeita encenação e que uma fez atingido o objectivo, os mesmos acabam por ir encenar para outra cidade. Aqueles que se apresentam como palhaços na realidade acabam por fazer de nós verdadeiros palhaços. Hoje, em Angola, quer seja no mundo real ou no virtual, vamos assistindo a um debate radical e de extremos em torno de questões políticas.
Há uma evidente intolerância para ouvir e aceitar os argumentos dos outros, respeitar a opinião divergente, reina a mentalidade de trincheira do quem não é por nós é contra nós. É que, quando as pessoas se dão conta que tudo não passa de encenações com guiões bem elaborados, acaba sendo tarde de mais, já elas estão demasiado envolvidas, demasiado formatadas e influenciadas. Este texto de Mia Couto só vem reforçar aquilo que há muito vamos sabendo: A política é uma grande palhaçada! É uma grande encenação e que apenas precisa de nós como plateia e que a cada cinco anos depositemos o nosso "contributo" para a manutenção do sistema.
Nota: O semanário faz uma pausa para férias colectivas e regressa ao convívio dos leitores no dia 7 de Janeiro de 2022, mas o online continua a dar-lhe notícias todos os dias.
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