Não se nega o mérito de João Lourenço de traçar como objectivo a defesa dos Direitos Humanos e a reconciliação da Nação angolana. Foi ele que, em 2018, ao definir a Estratégia do Executivo a médio e longo prazos, reconheceu:
"...um dos acontecimentos mais relevantes dessa época (1975-2002), que marcou o estado de degradação física e humana em que o País se encontrava, foi o processo do 27 de Maio e todo o cortejo de atentados aos Direitos Humanos que se seguiu" (Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos)".
Já anteriormente, o seu antecessor esboçara uma tímida tentativa, revelada no oficioso Jornal de Angola:
"O actual Governo partilha da legítima preocupação expressa pelos familiares e amigos das vítimas e desaparecidos da «tragédia fraccionista», no sentido de verem completados os esclarecimentos legais daí decorrentes". "Neste sentido, e desde algum tempo, o Governo tem envidado as várias possibilidades de resolução destas questões, incluindo a eventual «criação de uma comissão» que seria especialmente encarregada da realização desta tarefa" (edição de 10/04/92).
Em implementação da Estratégia definida por João Lourenço, e de um anunciado propósito de Reconciliação e Perdão, foi constituída uma Comissão, inicialmente designada de Homenagem às vítimas dos conflitos políticos, mas que, posteriormente, adoptou o acrónimo CIVICOP. De composição maioritariamente governamental, com participação de alguns partidos políticos e entidades religiosas, coordenada pelo ministro da Justiça e Direitos Humanos, Dr. Francisco Queiroz, tal Comissão diluiu o processo 27 de Maio num rol de conflitos políticos, não especificados, remetidos para um período temporal de 1975-2002. Contudo, o Dr. Francisco Queirós reconheceu, de viva voz, em reuniões da CIVICOP, que a mesma era fundamentalmente para tratar do "processo do 27 de Maio de 1977".
A dimensão da tragédia do 27 de Maio, que ceifou a vida de pelo menos 30 mil angolanos, está bem patente no seguinte trecho do livro do Dr. Hugo de Menezes, que foi, conjuntamente com Lúcio Lara, um dos fundadores do MPLA, em Tunes, em 1960:
"A árvore de repente secou. Agostinho Neto faleceu.
O "camarada"(Lúcio Lara) chorou convulsivamente. Quem não o viu chorar? Chorava a morte de Neto ou a sua própria morte? Porque naquele dia à mesma hora, também o "camarada" morreria para sempre. Será que chorava aquela morte que lhe trazia à memória os corpos e as almas de outras mortes? As mortes por fuzilamento, as mortes acompanhadas por gritos de horror de milhares de jovens impunemente assassinados? As mortes de pessoas enterradas à pressa no escuro da noite pela pá da escavadora impiedosa e cega? Ainda vivas, ainda conscientes, as vítimas imploravam aos carrascos que acabassem com elas, pois não queriam ser enterradas vivas. Jovens que foram massacrados a mando do "camarada", a mando de meia dúzia de sádicos e torcionários"(Percursos da Luta de Libertação Nacional; Hugo Azancot de Menezes, EDITORA VEGA, 2017, pág160)
O "modelo angolano" de reconciliação
Em vez de adoptar as orientações da política de Justiça Transicional, definidas pela União Africana, de que Angola faz parte, a CIVICOP optou por aquilo a que chama o "modelo angolano" de reconciliação, que se traduz numa operação de propaganda e cosmética.
Para a CIVICOP, vítimas tanto são os que sofreram a repressão e perderam a própria vida, sem julgamento, em violação frontal da Constituição de Angola, como os torcionários, os que carregaram no gatilho, lançaram os corpos para as valas comuns ou os deitaram para o mar. Estes últimos são vítimas, pois foram "obrigados" a obedecer a ordens superiores, pelo que não interessa identificá-los.
A reconciliação e o perdão são, para esta comissão, abstractos, traduzidos em canções e num monumento que irá custar a "módica" quantia de 50 milhões de dólares.
Assistiu-se, ainda recentemente, incredulamente, às homenagens do Estado angolano a um dos maiores repressores da ex-DISA (Ludy Kissasunda), que dirigiu directamente a repressão, o assassínio e o desaparecimento desses milhares de angolanos tombados no processo do 27 de Maio de 1977.
Em consequência, a Plataforma 27 de Maio anunciou, no passado dia 11 de Março, a decisão de suspender a sua participação nos trabalhos.
Uma verdadeira reconciliação
Todavia, João Lourenço ainda está a tempo de imprimir uma nova orientação à CIVICOP (que tem, no seu seio, alguns elementos idóneos). Para tal, devia começar por pedir perdão, a exemplo, aliás, do Papa Francisco, que, reconhecendo as omissões e cumplicidades da Igreja Católica no Ruanda, clamou:
"Imploro o perdão a Deus pelos pecados e faltas da Igreja e dos seus membros, entre eles padres, religiosos e religiosas, que cederam ao ódio e à violência e traíram a sua missão evangélica".
Uma verdadeira reconciliação pressupõe:
-Que se procure a Verdade Histórica, com uma investigação isenta e célere;
- Que seja definido como objectivo a identificação dos responsáveis pelos crimes cometidos, padrão dos atropelos aos Direitos Humanos perpetrados, única forma de se saber a quem se perdoa, na sequência de um pedido prévio de perdão;
- Que os agentes da repressão que praticaram crimes deixem de ser considerados "vítimas ", pois a obediência a ordens ilícitas e violadoras dos Direitos Humanos não constitui causa de justificação do crime praticado;
-Que se defina como objectivo central da Comissão de Averiguação e Certificação dos Óbitos a localização dos restos mortais das vítimas, a sua certificação pelo teste de ADN, e só depois a emissão das respectivas certidões de óbito, donde conste a data e causa da morte, e, por fim, a sua devolução às famílias.
Daí que a resposta à pergunta formulada no primeiro parágrafo seja "NÃO", seguida de "MAS AINDA É POSSÍVEL!".
*Advogado e Autor