Habituámo-nos, ao longo de todos estes anos de independência, a dar pouca ou nenhuma importância ao conhecimento científico, quer produzido ainda no período colonial e por renomados cientistas estrangeiros, quer depois da independência. O facto de o político sobrepor-se à ciência não é uma exclusividade angolana. Mas aqui atingem-se níveis assustadores, e nisso inclui-se também o conhecimento empírico, quer de técnicos e profissionais diversos, quer da população, em geral.

Se o Executivo e os principais partidos angolanos se preocupassem com a História, por exemplo, iriam encontrar abundante material que ajudaria a estabelecer um entendimento sobre a impossibilidade de restauração de impérios, reinos ou estados do passado e sobre o erro que persiste nalgumas mentes de "situar" diferentes grupos etnolinguísticos ou de atribuir-lhes determinados territórios. A história dos últimos dois séculos mostra como o tráfico de escravos e o comércio de marfim, da cera e da borracha, associados a comportamentos poligâmicos, com incorporação de escravas de diferentes origens, e, mais tarde, às movimentações a que a economia colonial obrigou, provocaram notáveis mudanças demográficas. Veja-se, por exemplo, a extraordinária expansão dos Ovimbundu, cuja "origem" é aceite ser no Planalto Central e hoje vivem e trabalham em praticamente todo o território nacional; e ainda os Cokwe, que venceram e (até certo ponto) incorporam os Lunda (na parte do território hoje angolana) e expandiram-se por todo o Leste, graças à superioridade na guerra e na caça proporcionada pelas armas de fogo conseguidas através do comércio, sendo a sua presença actualmente assinalada para além das fronteiras Norte, Leste e Sul. Sendo assim, encontrar em Angola um território legítimo Lunda-Cokwe, como alguns pretendem, é tarefa impossível.

Essas informações e muitas outras podem ser encontradas em vasta bibliografia em língua portuguesa, em que se incluem a alemã Beatrix Heinz e a nossa Ana Paula Tavares. Mas dois pequenos textos da historiadora Conceição Neto, publicados pelo prematuramente desaparecido jornal Jango em Abril de 1993 e em Abril de 1994, e nos quais me inspirei, constituem material suficiente para quem pretenda estar minimamente informado sobre a matéria.

Para analisar a situação de Cafunfo e o seu contexto, importa também visitar alguns trechos do discurso de tomada de posse do Presidente João Lourenço. Durante a sua campanha eleitoral em 2017, preocupou-me a sua reduzida preocupação com o tema da democracia. Porém, o seu discurso inaugural surpreendeu-me pela defesa da democracia e das liberdades. Apreciei que ele tivesse dito que "a Constituição será a nossa bússola de orientação e as leis o nosso critério de decisão", que "a construção da democracia deve fazer-se todos os dias", que tivesse desejado que "...o contrato social estabelecido entre governantes e cidadãos seja permanentemente renovado, através da criação de espaços públicos de debate e troca de opiniões", que se possa "... exigir o respeito pelos direitos e para garantir a participação plena dos cidadãos na resolução dos problemas das comunidades em que estão inseridos", "que estamos longe de atingir o ideal ... em matéria de pluralismo [na comunicação social]", culminando com um "apelo, pois, aos servidores públicos para que mantenham uma maior abertura e aprendam a conviver com a crítica e com a diferença de opinião, favorecendo o debate de ideias, com o fim último da salvaguarda dos interesses da Nação e dos cidadãos".

Ao fim de dois anos de governação, os analistas credíveis, tanto nacionais como estrangeiros, eram praticamente unânimes em considerar que os progressos na área da democracia eram encorajadores, reflectidos na melhoria das posições de Angola em diversos rankings internacionais, embora o mesmo não se pudesse dizer nas áreas da transformação da economia e na melhoria das políticas sociais.

Numa conversa intitulada "Regressos indesejáveis" (Novo Jornal, n.º 640, 19 Junho 2020), afirmei o meu temor por certas práticas de má memória do tempo do Presidente José Eduardo dos Santos estarem a ser recreadas. Entre elas, o regresso do monolitismo e do cinzentismo à comunicação social pública, a diminuição do nível de diálogo com a sociedade civil e o culto (ainda que tímido) de personalidade ao Presidente. A isso, junta-se agora o regresso de comentadores e analistas políticos, antigos e novos, que sofrem de daltonismo antigo. O espírito crítico e democratizante que vimos nos primeiros tempos da Presidência de João Lourenço, quando se dizia que voltara a valer a pena ouvir ou ler os media públicos, parece quase abandonado.

Cito, igualmente, as minhas chamadas de atenção para o que se passa em Cabo Delgado (Moçambique) há vários anos (Novo Jornal, n.º 644, 17 Julho 2020, entre outras). Trata-se de uma região onde estão reunidos muitos dos ingredientes das nossas províncias do Leste: proximidade de fronteiras, riquezas minerais exploradas por empresas sem preocupação com as suas responsabilidades sociais, pouca preocupação com a satisfação das expectativas da população local, ausência ou insuficiência de serviços socias básicos.

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