Há cerca de três semanas, ainda evocávamo-lo, eu e D. José Manuel Imbamba, arcebispo de Saurimo. Antecipando o seu regresso, confidenciei que tinha sido desafiado por D. Tirso a acompanhá-lo numa daquelas visitas pastorais que tornou famosas nas redes sociais. E a compor um Magnificat; gregoriano sobre a Tchianda na língua Luvale. Decidimos ali mesmo fazer-lhe uma surpresa: Compor o canto, ensaiar na Sé Catedral de Luena e cantar na primeira missa que celebrasse em Luena, em Acção de Graças, pela recuperação da sua saúde. Entusiasmado, D. Imbamba ficou logo ali de arranjar-me a versão em luvale da letra daquele portentoso trecho bíblico de Lucas Cap. 2, versículos 46-56, cantado e dançado naquele jeito pelo qual se apaixonara - não fosse ele o músico que era - na ordenação episcopal de D. Joaquim Nhanganga no Lubango no ano passado.
D. Tirso, manterei as duas promessas: a peregrinação pela Angola Profunda que tanto amaste; o apostolado pela felicidade, desenvolvimento e paz das suas gentes. E comporei o Magnificat; só que, afinal, em Acção de Graças pela tua vida e testemunho, meu padre, bispo e amigo...
Vida e testemunho que, por aquelas coisas que só Deus entende, acabou juntando-nos nas três grandes dimensões às quais D. Tirso se entregou de corpo e alma - literalmente - na sua caminhada missionária em Angola: a humanística, a governativa e a artística (sim, porque D. Tirso tinha um coração e alma de artista).
Na dimensão humanística, conhecemo-nos por volta de 1997. Ele era, então, o carismático padre Tirso, muito popular na comunidade das organizações humanitárias. Incansável, simpático naquele jeito salesiano, cabelo e barba meio crescidos. Queridíssimo pela juventude, com um rigor e responsabilidade fora de série. Com ele não havia ajuda humanitária que desaparecesse. "É para o padre Tirso? Dêem o que ele quiser" diziam-nos os chefes em Luanda. Dito e feito. Quando viesse buscar mais produtos, o padre sorridente e bem-humorado fazia-se sempre acompanhar pelo competente relatório de como tinha usado a mercadoria anterior. Fui levar-lhe alguns alimentos de terapêutica nutricional em Ndalatando. Assim que desci do carro, veio sorridente ter comigo a dizer que "já me conhecia bem". Perante o meu espanto, contou que soubera de mim através de um amigo comum, o Domingos das Neves, "que tinha dificuldades em deixar-se amar" (o mano Domingos também só está a saber agora). Pronto, conquistou-me logo. Dali para a frente, o carinho entre nós só cresceu e aprofundou. Até porque Deus teimava em juntar-nos uma e outra vez...
Por volta de 2014, então presidente da Comissão Episcopal das Comunicações Sociais da CEAST, convidou a mim e ao Domingos para fazer equipa com ele. Dali criámos o hábito de almoçar ou jantar juntos cada vez que viesse a Luanda. Vencemos juntos muitos desafios. Ali conheci outra faceta dele: a grande capacidade de liderança. Justo, extremamente organizado, exigente e muito trabalhador - até as horas de lazer eram agendadas - mas alguém que fazia um gosto trabalhar com ele. Sempre bem-disposto, tinha uma capacidade incomum de aliviar o peso do trabalho com um gracejo, uns minutos de diversão ou oração. Era um asceta. Poucos se davam conta disso por causa do seu carácter aberto e constantemente disponível. Com ele aprendi que uma pausa de cinco minutos no trabalho para uma breve oração - seja quando esteja mais difícil, seja quando estamos cansados - tem um extraordinário poder revigorante para o corpo e a mente. Fiquei com o hábito que muito me tem servido. Contou-me que era assim que fazia nas longas e extenuantes viagens em visita pastoral pela Diocese de Luena adentro. Partilhávamos o amor e a disponibilidade pelas nossas gentes, especialmente pela juventude. Afinal ele era, escuteiro como eu...
Quando fui para o Executivo, calhou-me dirigir pela parte do Governo, uma espécie de comissão bilateral para a expansão da Rádio Ecclésia. E quem a chefiava pela parte da CEAST? O meu velho amigo D. Tirso. Logo-logo, era uma estrela cintilante no gabinete do secretário de Estado, que passou a frequentar para as várias reuniões que tínhamos. Era para o pessoal "o bispo simpático". Tinha sempre uma palavra, um gesto, um sorriso ou só mesmo um olhar luminosamente bom para todos. Se acontecesse chegar antes de mim, encontrava-o com dificuldades para escapar aos doces, bolos, café e sei mais o quê que os colegas empilhavam à sua frente enquanto esperava. Não sabiam o que fazer para deixar "o bispo simpático" contente...
E assim fomos andando, dois companheiros de almas gémeas, ajudados pela excelente equipa que tínhamos; do lado do Ministério da Comunicação Social chefiados pelo Rui Vasco e da CEAST pelo então padre Maurício Camutu, Director da Rádio Ecclésia. Expandindo passo a passo o sinal da Rádio Ecclésia pelo país. Primeiro pelas sedes das dioceses; depois seria pelo interior quando fosse aprovado o pacote legislativo da comunicação social, que não permite ainda a emissão em ondas curtas e em cadeia.
Para ele, tudo estava a levar muito tempo e não algumas vezes não era fácil travá-lo. Valia a nossa profunda amizade mútua e a forma como eu ficava genuinamente divertido com os truques que usava - o que o desarmava também. Uma vez, impaciente, comprou e instalou à revelia um repetidor em Cazombo que retransmitia o sinal da Rádio Diocesana do Luena, o que a lei ainda não permite. O Administrador bem furioso, o Governador também. Os outros bispos divertidos, provocavam: "vocês não são amigos? Resolvam". Até o Ministro João Melo "epá, resolve lá com o teu amigo". E eu: "mas ó D. Tirso, porquê não me avisou"? E ele sereno e maroto "porque se te tivesse dito, não aceitarias. Agora já instalei". Caí na gargalhada, era impossível zangar-se com ele. Lá o convenci a deixar lá ficar a repetidora sem ligar por alguns meses, pois contávamos fazer aprovar a competente legislação em questão de semanas... que se arrastam até hoje, infelizmente.
Partilhávamos o gosto pela música sacra, ele mais solto na tradição salesiana de D. Bosco; eu mais tradicionalista, herança do Cardeal Nascimento, meu mentor. Os gostos cruzavam-se então na rendição aos ritmos e cantares da nossa gente Bantu. Ficou tão maravilhado com uma composição do Magnificat em lumwila, gregoriano sobre o ritmo tyindyomba, cantada no Lubango por ocasião da ordenação episcopal de D. Nhanganga, bispo do Uíge que me fez prometer que faria algo semelhante na língua do Moxico, o luvale. O que farei...
Já doente, na Itália, as nossas conversas, sempre longas apesar das dores, terminavam invariavelmente na preocupação que não o largava relativamente aos projectos na sua querida Diocese. Sobretudo se, desaparecendo ele, os doadores continuariam a financia-los. As últimas conversas eram porém mais optimistas. Via o regresso no horizonte. Eu ia-lhe dizendo que solicitasse um bispo auxiliar. Ele respondia dizendo que se o Santo padre permitisse, gostaria de ser ele a iniciar a Diocese de Cazombo e lá ficar até à reforma. Nessas coisas era teimoso. Às vozes contrárias, preocupadas com a sua saúde, não dizia não. Sorria-se consigo e ficava na dele. Quando nos assustássemos, já tinha feito as coisas ao seu jeito. Para depois justificar candidamente: "não disse porque sabia que vocês não aceitariam". O Domingos das Neves, outro grande amigo dele, é que às vezes ficava passado com essas do "padre Tirso". Contudo sabíamos que o que fazia, era pelo grande amor que nutria pelo seu Moxico e as suas gentes. Era literalmente o seu "Pai Branco".
Voz crítica, tinha um extraordinário dom da crítica construtiva. Talvez por causa do imenso amor pelas pessoas com as suas fragilidades que exsudava de cada poro sem ele mesmo se aperceber. Inconscientemente e como a Igreja, abominava o pecado mas amava o pecador. Comunicólogo exímio, usava as suas páginas nas redes sociais para denunciar o que considerava más práticas; fazia-o contudo de formas que o seu coração mantinha-se aberto para acolher a quem chamava a atenção. Muitas vezes, deixava as fotografias - que uns dizem valem mil palavras cada - falarem por si. Era o bispo que vimos descalço a safar a viatura de um lamaçal. A transportar troncos para ajeitar uma ponte precária. De mitra e báculo em capelinhas de adobe ou pau-a-pique levando o consolo da sua presença no mais profundo da Angola Profunda. Também o mesmo bispo que na abertura do PIIM pelo Presidente da República movimentava-se sem cessar entre ministros e secretários do Presidente, sempre com a mesma mensagem: as estradas; as escolas; os hospitais; a água potável; a energia eléctrica; a rádio nacional; mais quadros; etc... conhecia como a palma da mão os quatro cantos "da diocese mais extensa da África Subsariana" como chamava a sua Lwena. Quanto às suas gentes, não apenas falava a sua língua melhor que muitos nativos. Sentia-se um daqueles que tinha adoptado no coração como seus. Conhecia - Oh! Como conhecia - "o cheiro das suas ovelhas" como orienta o Papa Francisco. Partilhava-o nos corredores da alta política, economia e diplomacia internacional onde ia buscar as doações para os projectos da sua Diocese...
Sinto uma profunda dor na alma pela sua partida. Mas, ele próprio dizia muitas vezes nos momentos difíceis que partilhámos "olha, com tristeza é que certamente não vais a lado nenhum. Há que superar". Por isso, quero concentrar-me na Acção de Graças pelo dom da sua passagem entre nós. Fazer aquilo que ele gostava de aconselhar "se subires menos porque carregas os teus irmãos, é certamente mais agradável a Deus". E assim levar à frente os sonhos e projectos que tinha pela nossa terra e nossa gente que adoptou como suas.
Como todos os que interagiram com ele, não sinto a partida apenas do padre e do bispo em cuja missão foi inclusive de uma excelência ímpar. Lamento sobretudo a ausência do amigo, o conselheiro, a pessoa com quem era tão agradável partilhar as coisas da vida. O homem que nos transportava para Deus sem precisar de nada dizer, apenas com a luminosidade da vida que queríamos todos imitar. O asceta que tinha a alma naqueles olhos da cor do céu e escondia isso num sorriso maroto de quem acreditou na humanidade até ao fim. O missionário que transportou a cruz da sua missão com tanta alegria, que só agora que partiu começamos a perceber as dores que sofreu. Assim se fazem os santos. Passam por nós e nem nos damos conta.
Vai em Paz, padre Tirso, amigo Tirso. Guarda o nosso lugar no Céu para que nos encontremos na eternidade. Aí onde nos juntaremos aos coros dos anjos para, na glória de Deus, cantarmos triunfais o Magnificat em Luvale que vou compor por ti.n
*Comunicólogo