Um ano não tinha passado da proclamação da Independência. Já estávamos lá, de mochilas às costas, sob efeito de uma indescritível euforia. Éramos nós, herdeiros legítimos da utopia daqueles tempos, sedentos de lutar por algo sagrado que nos diziam existir algures, aprisionado sob as botas de cruéis tiranos e se chamava Liberdade. Uns fugidos de casa dos pais, outros voluntários genuínos, convocados pela revolução, juntos partimos de comboio para a campanha do café.
Éramos jovens e destemidos. Pobres e sonhadores. O que precisaria mais, a nossa nascente revolução? Venerávamos os heróis tombados na luta de libertação, Hoji Ya Henda, Gangula e Gika. Nos tornamos devotos seguidores do nosso presidente, o Dr. António Agostinho Neto. Numa palavra, sintetizávamos o combustivel ideal para fazer avançar a máquina da revolução do poder popular. Alguns de nós já tínhamos combatido antes da Independência. Mais uma vez, nos era pedido para avançar sem vacilar, declamando poemas de Neto e entoando canções revolucionárias nas fogueiras de guerrilheiros.
Após uma viagem de comboio de meio dia, chegamos à Ganda, onde pernoitamos ao relento nos jardins do edifício da antiga Câmara Municipal. Mal amanheceu, subimos em autocarros e partimos sem saber para onde. Após uma hora de viagem, avistamos os verdejantes cafezáis plantados nas encostas montanhosas que circundam a Chicuma, distante cerca de 70 quilómetros da cidade da Ganda, confinando com Caluquembe e Chilata. Eram esses campos agrícolas, o nosso destino.
A nossa nobre missão era a de baixarmos ao nível social das massas campesinas, que ali viviam em atroz miséria, causada por quinhentos anos de escravidão colonial. Íamos trabalhar com eles, na colheita do café.
Ser revolucionário, ainda que não se fosse um barbado e eloquente como Fidel, era a moda do momento. Nenhum revolucionário, que assim se considerasse, viraria as costas à tão nobre missão. Estávamos no âmbito da aliança operário-camponesa, a qual se juntava a franja de intelectuais revolucionários, esta última vista com alguma desconfiança no processo, fruto da sua original fragilidade ideológica, que a tornava vulnerável à infiltração da burguesia e, sobretudo da pequena-burguesia. Portanto, a missão era nobre e purificadora.
Teríamos de atingir decididamente o nosso objectivo, fosse como fosse, ainda que tivéssemos de remover montanhas, como dizia a letra do nosso hino proletário. Durante certo tempo, viveríamos na mesma humilde condição dos camponeses explorados da Chicuma. Mostraríamos ao mundo a nossa incondicional devoção à causa revolucionária e, num extremo ritual de purificação, utilizando como ferramenta as nossas próprias mãos gretadas e dilaceradas, colheríamos os bagos vermelhos dos cafeeiros abandonados pelos colonos. Este seria o nosso contributo para ajudar a economia de Angola a reerguer-se dos escombros.
A data escolhida foi o dia 27 de Julho de 1976. Esse dia calhou numa terça-feira. Recordo-me bem da data, porque acontecia nessa semana o matrimónio da mais alta individualidade da província de Benguela, o Comissário Estêvão Gungo Arão, acabado de ser nomeado pelo presidente Agostinho Neto. (Arão casava com uma prima minha). Do pouco que conheci, ele era um homem culto e bem parecido, quase sempre vestido com um bubú africano de tons vivos e alegres.
A primeira vez que vimos o nosso comissário provincial foi num comício, quando o apresentaram à população. Quem o acompanhou, após a nomeação, foi o então ministro da Administração Interna, o comandante Nito Alves. Ao longo do dia tínhamos sido mobilizados a partir das escolas. O que nos espantou, foi que Nito Alves, de forma inesperada, resolveu realizar o comicio no período da noite, o que não era normal. O habitual, eram os atrasos nos horários para se iniciarem as actividades revolucionárias.
Naqueles tempos, eu acreditava piamente que eram incontornaveis razões de segurança, que levavam os chefes a chegarem sempre atrasados às actividades que eles próprios presidiam. Com o mesmo desencanto de um garoto que vê quebrar o seu brinquedo de estimação, mais tarde descobri que, enquanto as massas ficavam horas e horas gritando vivas sob sol inclemente, os "muatas" estavam refastelados nas poltronas das salas de estar, gargalhando piadas de caserna e tomando whisky escocês.
Após uma longa espera, vimos repentinamente Nito Alves assomar à varanda do edifício do Palácio, ladeado pelo comissário Estevão Gungo Arão, com o seu habitual bubú florido. O ministro cerrou os punhos para a multidão excitada e gritou com firmeza:-"Um só povo! Uma só Nação! A Luta Continua, a Vitória é Certa!"- De seguida, desfiou um discurso flamejante, muito aplaudido pelo pessoal espalhado pelos jardins e relvados da antiga casa dos governadores coloniais no distrito de Benguela.
Um ano depois, estes dois homens partilhariam um trágico destino: em Maio de 1977, Nito Alves seria acusado de liderar, em Luanda, uma intentona golpista contra o presidente Agostinho Neto. Durante o levantamento, a Rádio Nacional chegou a estar momentaneamente nas mãos dos revoltosos, mas esta seria de imediato retomada, com a intervenção dos militares cubanos que se encontravam em Angola. A intentona fracassou, mas o que se seguiu foi um autêntico banho de sangue. Na sequência de uma implacável purga interna no MPLA, Estêvão Gungo Arão seria igualmente detido e nunca mais a família o veria, nem vivo nem morto. Nito Alves, por seu lado, seria executado após ter estado a monte durante algum tempo, nas matas do Norte de Luanda, onde estava instalada a Primeira Região da guerrilha anti-colonial do MPLA.
Naquela manhã cinzenta de Julho, típica da época de cacimbo, o comboio do CFB com as ruidosas brigadas de estudantes a bordo, partiu da velha estação de Benguela, descreveu a curva do Quioche e cruzou a ponte do Cavaco. Durante 15 minutos a locomotiva diesel-eléctrica esgueirou-se por uma galeria entre o canavial da açucareira e a estrada asfaltada, ladeada de palmeiras de dendêm, até chegar ao nó da estação do Negrão.