Por exemplo: para quem recebe o salário mínimo ou não receba salário nenhum, dois mil kwanzas é uma quantia significativa. Não esqueçamos que o "Kwenda" distribui oito mil e 500 kwanzas por agregado familiar por mês, e as famílias que o recebem, e já são muitas, estão muito satisfeitas. Interessante ouvir repetidamente que tal pecúnia, recebida trimestralmente, tem permitido a muitas famílias no interior começar pequenos negócios. O que permitirá multiplicá-la e ter um papel não desprezível no agitar da economia das localidades empobrecidas. Entretanto, há outros que necessitam de uns milhões para poder sobreviver. Pois, consideram-se desamparados se não puderem satisfazer um conjunto de necessidades que artificialmente foram criando, e sem as quais julgam não poder viver. Umas colunas BeoLab 90, por exemplo, para ouvidos ultra-sensíveis (que, na maior parte dos casos, não são os dos seus possuidores, pois estes, quase sempre, as adquirem mais pelo status do que pela qualidade), e de que não vou dizer o preço para não ferir "as vistas" de quem lê esta crónica. Lá está, são números que magoam.
Num dos telejornais da nossa insuspeita RNA, foi noticiado que foram arrestados e são geridos por fiéis depositários legalmente definidos, neste momento, mais de 14 mil milhões de dólares de activos. Quando os números já começam a ser mais longos escritos com algarismos do que quando o são por extenso, devemos olhar para eles com cuidado. Se calhar até com alguma reverência, pois não podemos ser insensíveis à sua magnitude. E fiquei a pensar: quantos desses investimentos continuavam efectivamente activos? E também como este termo, que era mais comummente utilizado quando aplicado aos miúdos irrequietos e aos anciãos cheios de saúde, entrou agora no léxico popular, vulgarizando-se essa sua nova acepção. Não pude deixar de recordar-me de uma notícia que foi alvo de enorme escrutínio, pelo menos nas redes sociais, e que não vi comentada por quem de direito, que referia o facto de se ter decidido distribuir 10% do valor dos activos recuperados para o Estado, pelos autores da apreensão. Eis algo com o qual estou profundamente em desacordo.
A monetarização extra de qualquer actividade parece-me o reconhecimento da falência da moral (e bons costumes, acrescentaria, se não fosse uma frase tão gasta). Afinal, quando o pessoal da Saúde recupera a vida de um cidadão, como deveremos valorizá-la? Quando um professor prepara uma criança para se tornar um exemplo de civismo e capacidade empreendedora, que percentagem deveria receber dos benefícios a que indirectamente deu origem?
Os números têm esta capacidade de gerar imagens, e nos despertar. E, por isso, os da pobreza multidimensional tanto nos ferem. Mesmo quando nos procuramos enganar com os truques habituais que utilizamos para diminuir o impacto das coisas que nos incomodam, eles mantêm-se ali. Irredutíveis, como os gauleses de Astérix. Os três homens que passam o dia junto aos contentores de lixo na rua onde moro, ou as crianças com cartazes "TENHO FOME, ME AJUDA SÓ", ou as mães que expõem os filhos junto aos supermercados, trazem-lhes sentido.
Os números só não devem servir para nos desanimar.