Há poucos dias, vagueando pela internet, tive um achado precioso, uma crónica escrita em 1958, bem na véspera da Copa do Mundo daquele ano, por um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, Nelson Rodrigues, que, no calor da emoção, disse que o Brasil só não tinha sido campeão do mundo até aquela altura por causa de um certo complexo de "cachorro vira lata", isto é, de algum sentimento de inferioridade por parte dos seus jogadores diante dos seus adversários.

Aparentemente a crítica em tom tão forte e plena de ironia atingiu em cheio o orgulho dos jogadores da selecção canarinha, que ganharam a tal copa de 1958, a seguinte, em 1962, e a de 1970, tempos do Rei Pelé, em que a pátria das "chuteiras imortais" encantou o mundo com o seu futebol samba, feito com magia, alegria, fantasia e aquela malícia bem brasileira.

Os dois casos que citei acima são exemplos vivos da paixão que este jogo maravilhoso desperta nas pessoas ao redor do mundo. Muitas vezes, como toda paixão verdadeira, não há qualquer explicação racional, é simplesmente o amor pelo jogo.

Para lá da paixão e da emoção, do lado da razão movida pelo dinheiro, esta Copa do Mundo do Qatar, que desportivamente até agora está com uma média de golos inferior à dos jogados na Rússia e no Brasil, é a melhor de sempre. Os homens da FIFA estão felizes da vida, apesar de um aparente disfarce que vai se notando de vez em quando, pois o campeonato deste ano até esta altura bateu todos os recordes financeiros, gerando um rendimento de cerca de 7,5 mil milhões de dólares norte-americanos, uma cifra maior que os PIB"s do Djibuti e do E-Swatini juntos, por exemplo, e estando um bilhão de dólares norte-americanos acima daquilo que rendeu a copa da Rússia.

Os direitos de transmissão televisiva são a maior parte da receita, cerca de 49% do total (3,1 bilhões de USD), seguindo-se os rendimentos que resultam do poderoso marketing à volta do torneio, com o envolvimento de poderosíssimas empresas, como a cervejeira norte-americana Budweiser, a Adidas, a Coca Cola, o Youtube, a cripto.com, Mc Donald"s e tantas outras.

O vencedor da edição deste ano irá receber a cifra recorde de 39 milhões de dólares, o vice-campeão, banhado em lágrimas de crocodilo, terá um rendimento de 30 milhões de USD e a equipa bronzeada levará para casa a nada módica quantia de 27 milhões de dólares. Definitivamente, esta é a copa do dinheiro, aliás, sempre foi assim vista tão logo foi escolhido o Qatar como país sede, não se livrando os homens do futebol de uma nuvem de suspeição muito carregada sob as suas cabeças.

Estar nesta competição por si só já vale um prémio, tanto é assim que aquela que for classificada em último lugar numa hipotética tabela (muito provavelmente o país anfitrião) terá direito a 9 milhões USD, o que é absortamente extraordinário e demonstrativo do poderio financeiro deste evento.

Por tudo o que disse neste texto, por aquilo que já vivemos com os cruzamentos teleguiados do Zé Kalanga para as cabeças virtuosas, por dentro e por fora, dos seus companheiros Akwá, no Rwanda, e Flávio Amado, na Alemanha, pela alta rentabilidade financeira e pela exposição positiva de alcance global que a participação numa prova destas acarreta aos países que dela participam, lanço já aqui e agora um repto aos homens do futebol: em 2026, nos Estados Unidos, Canadá e México, temos que estar!

Na próxima Copa do Mundo, África terá direito a mais quatro equipas do que tem tido nos últimos torneios, portanto, seremos 9 representantes do continente berço, por isso, é uma oportunidade acrescida para os nossos Palancas Negras fazerem novamente história e realizarmos uma "nova viagem" para as Américas, honrando os milhões de nossos ancestrais que daqui foram levados para o então "Novo Mundo" há centenas de anos.

Se não nos qualificarmos para o Mundial de 2026, continuaremos a ser um País que ama o futebol e que vive intensamente a ilusão que este jogo transmite às pessoas. Perderemos, simplesmente, duas coisas: por um lado, a oportunidade de viver com mais intensidade este, que é dos maiores eventos mundiais, e, por outro lado, muito dinheiro, que tanta falta nos faz.

*Jurista, Presidente do Clube Escola Desportiva Formigas do Cazenga