No passado dia 19 de Junho do presente ano, o Ministro de Estado para a Coordenação Económica (MECE) concedeu uma grande entrevista ao Jornal de Angola, onde fez um balanço do seu primeiro ano ao leme da economia nacional e apresentou o que, em sua visão, seria um quadro para o futuro. A leitura cuidada da entrevista leva-nos inevitavelmente à celebre frase de Karl Marx (1818 - 1883) que dizia que «a história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa». Esta frase de Karl Marx convida-nos a uma reflexão sobre o conteúdo da entrevista do MECE e a ponderar a importância de se conhecer os acontecimentos passados a fim de transformar o presente e o futuro, evitando reproduzir os erros já cometidos.
O quadro abaixo demonstra em números o balanço do desempenho do primeiro ano do MECE. O Produto Interno Bruto (PIB) nominal caiu dos USD 124,79 mil milhões em 2022 para USD 94,4 mil milhões; a taxa do crescimento real do PIB global estagnou em 2023 nos 0,5% quando em 2022 se havia expandido em 2,9%; a taxa de crescimento real do PIB não-petrolífero, em 2023, ficou em quase metade da observada em 2022, ou seja, 2,9% e 4,2% respectivamente.
O sector petrolífero aprofundou ainda mais o seu declínio para um decréscimo na ordem dos 6,1%. A inflação acelerou para os 20% no final de 2023, e em Maio de 2024 já rondava os 30,16%, o que significa um acréscimo de 19,54 pontos percentuais em relação à taxa observada em igual período do ano anterior. A taxa de depreciação da moeda nacional (Kwanza) foi de 96,91%, levando o poder de compra internacional da moeda nacional a praticamente a metade do que valia antes de 2023.
Esta síntese quantitativa projeta uma imagem pouco abonatória do primeiro ano do MECE - uma estreia francamente pouco conseguida com os princípios indicadores macroeconómicos a piorarem. Revela também algumas lacunas graves do titular da pasta no domínio de alguns aspectos estruturais cruciais da economia angolana, normalmente detectáveis em análises dos técnicos de organismos multinacionais - Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BNA) - pouco afeitos às peculiaridades e idiossincrasias da realidade das economias em desenvolvimento dependentes do sector petrolífero (Villafuerte and Lopez-Murphy, 2010; Nazlioglu, Gormus and Soytas, 2019) .
Ora vejamos,
O MECE afirma que a alta da inflação é essencialmente derivada do comportamento da classe dos bens alimentares que representam 55,7% da trajectória do índice de preços. Na entrevista, o MECE empurra para "factores fora do controlo da Equipa Económica (EE)" as razões deste comportamento da inflação, nomeadamente i) os preços no mercado internacional; ii) os custos de transporte; iii a taxa de câmbio; e iv) a falta de capacidade dos importadores nacionais. Esta afirmação merece uma avaliação porque reveste-se de uma gravidade transcendental. De plano, é falso que a EE não tenha influência sobre esses factores.
Primeiramente, o MECE aponta os custos de transporte e a falta de capacidade dos importadores nacionais como factores que contribuíram para a inflação sem que a EE seja capaz de influenciar a sua competitividade. Não é difícil concluir que grande parte dos custos de transporte estejam relacionados com factores internos que podiam ser corrigidos pela própria EE. Por outro lado, através do departamento ministerial responsável pelo comércio externo, a EE é responsável por licenciar os importadores nacionais com capacidade e idoneidade necessárias para garantir a importação dos bens alimentares com os melhores preços e a qualidade necessária. Neste contexto, a ferramenta dos leilões pode assegurar a aquisição de bens alimentares a preços mínimos, desde que realizados sob supervisão competente.
Por tudo isso, não é sério e nem responsável situar esses factores fora do âmbito do seu controlo. Tanto é assim que, por exemplo, na mesma entrevista o MECE refere haver sido feita uma primeira tentativa de leilão de licenças para a importação de arroz e açúcar que resultou numa diminuição de mais de 50% do seu custo. Então, é possível afinar e optimizar os mecanismos de licenciamento dos importadores e os procedimentos de importação que levam à redução substancial do preço do produto importado. O que não é dito é o que foi feito aos importadores nacionais que praticavam preços abusivos na importação de arroz e açúcar. Vamos acreditar que neste momento aqueles já se encontram a contas com a nossa "polícia económica" e com os inspetores da autoridade da concorrência, uma vez que terão supostamente lesado as famílias angolanas, o que não deve ficar impune.
Entretanto, em segundo lugar, o mais grave é o atestado de incompetência que o MECE aparenta atribuir à administração do Banco Nacional de Angola (BNA), que é responsável pela condução da política cambial e que não foi capaz de evitar a forte depreciação do Kwanza que alimentou a inflação. Esta situação é inusitada e caricata quando consideramos que o actual MECE foi Governador do BNA antes da sua nomeação para o cargo de Ministro de Estado. Pasme-se!
Em terceiro lugar, sobre a criação de emprego e medidas para fomentar o crescimento económico, o MECE demonstrou que a EE do Presidente João Lourenço está amordaçada e órfã de iniciativas que vão de facto alterar a trajectória da produção nacional a curto e médio prazos. Limitou-se a elencar um conjunto de objectivos programáticos que constam do Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN) 2018-2022 e do Programa de Reconversão da Economia Informal (PREI) 2023-2027. Não apresentou nenhuma medida emergencial ou de caráter urgente digna de uma avaliação sobre a sua pertinência ou não, apta a alavancar o processo de dinamização da actividade económica não-petrolífera.
Como se diz na gíria popular "é aqui que a porca torce o rabo" porque é inadiável aprovar e implementar um conjunto de medidas disruptivas, arrojadas e catalisadoras, capazes de induzir uma dinâmica de crescimento virtuoso. Infelizmente para a EE não será possível afastar a economia do seu estado de paralisia vegetativa com medidas invariantes. Precisamos romper a inércia que alimenta o ciclo de degradação económica.
Como temos insistido nos nossos artigos de opinião ao longo dos últimos 12 meses, mesmo sem lançar mão a recursos de prognose económica de grande sofisticação técnica, resulta fácil antecipar que as medidas de emergência propostas pela EE e aprovadas pelo Executivo do Presidente João Lourenço no início do 2.º semestre de 2023 não lograriam mudar a trajetória de empobrecimento do povo. Alias, a situação piorou e, pela primeira vez no período pós-guerra, antecipamos dificuldades a curto prazo para alguns agentes que até então só se beneficiaram com essas medidas invariantes.
Como referido pelo FMI (IMF, 2024), no seu último relatório da missão do Artigo IV, o sector bancário permanece fragmentado, com bolsas de elevada vulnerabilidade. A maioria dos bancos comerciais beneficiaram da significativa depreciação do Kwanza, o que contribuiu decisivamente para os resultados positivos em 2023. Entretanto, o desempenho da carteira dos empréstimos dos bancos está a deteriorar-se de forma persistente e significativa. O risco de contágio também está a crescer com o inexplicável adiamento da reestruturação do "banco problemático", o que poderá representar um risco - contingente - para o tesouro nacional. Fica o nosso alerta!
Por fim, resta-nos insistir na necessidade do MECE resolver urgentemente o dilema da trindade impossível. Transcorridos 12 meses, ficou evidente que estávamos certo quando alertamos para os riscos que o MECE enfrentaria na condução da política económica. A restrição orçamental é hoje muito mais difícil e só não é pior graças ao comportamento dos preços do petróleo no mercado internacional e a uma tributação draconiana no sector não-petrolífero - as famílias e as empresas estão asfixiadas com impostos. A priorização da despesa pública persiste em ser um exercício camaleónico, onde ninguém percebe o que é urgente e o que é importante. Saber distinguir entre os 2 pode ser a chave para maior responsabilidade orçamental e melhoria da qualidade da despesa.
O comportamento de muitos dos gestores públicos continua a ser igual aos dos participantes de um baile de finalistas de uma escola secundária, típica dos países anglo-saxónicos, onde todos desfilam e cortejam o júri para ser eleitos o rei e a rainha da noite. Todos querem protagonismo e atenção mediática sem respeito da restrição orçamental e das prioridades ditadas pela conjuntura de degradação económica. De cima, os exemplos também não são os melhores, onde a prática de adjudicação direta continua a predominar.
A verdade incontornável é que substituir o Prof. Manuel Nunes Júnior nunca seria fácil, não só pela sua competência técnica e autoridade politica mas também porque a reversão da trajectória de perda de competitividade da economia e empobrecimento do provo requer do Executivo mudanças estruturais e radicais, tais como; i) a implementação do regime cambial do sector petrolífero para garantir a estabilidade do kwanza; ii) a reestruturação da dívida pública para devolver sustentabilidade às finanças pública e aliviar a pressão fiscal sobre as famílias e empresas; e iii) promover verdadeiramente a meritocracia como critério principal para o desempenho de funções públicas - os "sim chefe" normalmente não são úteis nos momentos de grandes adversidades.
Neste momento vale recordar Thomas Sowell, economista norte-americano, crítico social, filósofo político e membro sénior da Hoover Institution da Universidade de Stanford, quando dizia que "é difícil imaginar uma maneira mais perigosa de tomar decisões do que deixá-las nas mãos de pessoas que não pagam o preço por estarem erradas".

*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
28.06.2024

Bibliografia
?IMF (2024) Angola Article IV Staff Report. IMF Country Report 24/80. Washington, D.C: The African Department - International Monetary Fund.
?Nazlioglu, S., Gormus, A. and Soytas, U. (2019) "Oil Prices and Monetary Policy in Emerging Markets: Structural Shifts in Causal Linkages", Emerging Markets Finance and Trade, 55(1), pp. 105-117. Available at: https://doi.org/10.1080/1540496X.2018.1434072.

Villafuerte, M. and Lopez-Murphy, P. (2010) "Fiscal Policy in Oil Producing Countries During the Recent Oil Price Cycle", IMF Working Papers, 10(28), p. 1. Available at: https://doi.org/10.5089/9781451962536.001.