Durante o início da manhã, tudo na cidade parecia fluir naquela corriqueira normalidade do improviso colectivo de sobrevivência, numa nação sufocada na incertitude de sucessivos anos de guerra. No entanto, independentemente de qualquer vontade individual, havia uma maldição escrita pelo insaciável demónio das águas profundas do rio Bengo. Qualquer coisa sinistra estava destinada a acontecer, ali por bandas do meio-dia, quando o sol estivesse justamente no zénite. O alinhamento do astro-rei, no seu ponto mais alto, tende a determinar a ocorrência de determinados eventos, assim diz o destino.

O que sucederia ao certo, isso ninguém sabia, nem poderia saber, porque o porvir apenas a Deus pertence. Porém, há dias em que o Satanás, travestido de pessoa, consegue vencer uma batalha contra o Bem, mas depois tudo volta ao seu lugar, porque a força de Deus é maior e é justa.

Por essa razão, baseada na insuperável sabedoria que se obtém na escola da vida, os mais-velhos avisam-nos sempre para não termos motivos para soltar gargalhadas e cantar vitória, apenas porque ouvimos, pela doce manhã, o alegre chilreio dos pássaros, esvoaçando em redor do mamoeiro no quintal, ou avistamos pelas persianas da janela, os primeiros raios do sol a despontar no horizonte. Até ao próximo crepúsculo, muita fruta amarga pode ser servida e torrentes de água bruta podem deslizar, tumultuosamente, por debaixo da ponte e arrastar para as sargetas, singelos sonhos e audazes projectos de vida.

O azar desse aziago dia, era mesmo que não tinha corrido água nas torneiras da "EPAL" na cidade de Luanda. Rivalizando com a sua congénere da electricidade, a "EPAL" até hoje continua especialista em pregar partidas aos consumidores. Para não variar, nesse dia, o abastecimento de água fora interrompido sem aviso prévio. Ou melhor, quando gritaram na boca do povo heróico e generoso: "água foi", a água já tinha bazado mesmo. No bairro, as torneiras viraram repentinamente tetas secas na boca sedenta dos miúdos.

Iniciou a habitual correria das pessoas, com a recolha das bilhas, bacias e baldes. A miséria colhida nas intermináveis filas para comprar a comida com cartões de racionamento nas "Lojas do Povo" e na "Empa", foi esquecida por um instante. Tem dia de lutar pelo peixe, dia de lutar pelo frango e dia de morrer na fila do pão. A luta de hoje é a luta da água, sem água não há vida.

No bairro, tudo se movia num rodopio de carnaval da vitória, dançado em Março por crianças novas e velhas e raparigas vestidas de trajes deslumbrantes, no asfalto quente da avenida marginal.
"Vão vender água no camião da cisterna" - gritou uma mana com duas bilhas de vidro nas mãos. No último Natal, esses garrafões esverdeados tinham trazido de Espanha uma endiabrada zurrapa de tinto, chamada "Mosteiro" que enlutara muitas famílias. Devido à extrema letalidade do seu teor alcoólico, o povo passou a chamar-lhe "morteiro". Naquele tempo, o governo ainda ouvia as lamentações do seu povo, deixou assim de importar tal mixórdia, cujo nome fazia estremecer até os inveterados bebedores de Kapuka envelhecido em cascos de tambores de chapa, temperada com pilhas "tudor" esfareladas.

Muitos infelizes foram vitimados sem glórias, pela letal pinga. Os nossos mortos foram sepultados e esquecidos no decurso do tempo com os outros mortos que eram da guerra verdadeira. Provavelmente, desde Madrid, o próprio rei Juan Carlos não tenha sequer sabido do terror que os "morteiros" das quintas castelhanas causaram nas hostes angolanas.

O certo é que, a partir daquela data, todo o "mwangolé" de sucesso ficou a desconfiar da pinga espanhola, ao contrário da portuguesa que até ao presente é consumida aos kilolitros e está no topo da nossa lista de importações, só faltando aparecer um "muata" maluco para mandar agregar, com devidas subvenções, à nossa cesta básica, ao lado das caixas de coxa de frango, do óleo alimentar e do providencial saco de arroz.
- "A cisterna não vai vir hoje, o vizinho Jaquim disse vai ir no Kifangondo com o carro dele, amos na busca da água no próprio rio", berrou um rapazola que estava metido no negócio do precioso líquido.

Toda a gente no bairro apoiou a ideia e o gesto prestável do vizinho da camioneta "Bedford" herdada do antigo patrão colono, que entretanto fugira para Portugal, após o 25 de Abril. No rio, ninguém iria pagar nada. O rio é do povo, a água é do povo. As águas do rio são pilares de uma verdadeira democracia. As águas correm por igual para todos, com a graça de "Nzambi". A única disciplina é que homens e mulheres não banham na mesma margem do rio. Na nossa cultura isso se aprende desde pequeno, sem que seja necessário torcer pepino algum.

Assim partiram eles, sem mais delongas. A carrinha levava na "kipula" o pessoal com o seu vasilhame para acarretar a água, rumo certo à Kifangondo. Vira aqui, curva ali, acelera acolá, o motorista foi-se esgueirando, matreiramente, no apertado trânsito de antes do meio-dia. Naqueles anos, as estradas não estavam tão entupidas como os tubos de água da EPAL. A viagem seguia tranquila. Entrementes, o espertalhão do motorista, o tio Joaquim da "Bedford", ganhara tempo para lançar um olhar famélico de lobo "vou-te-comer", em direcção a cara da sobrinha de olhos de amêndoa e sorriso maroto, mas ia um garotelho, um "empata-samba" atrevido no meio dos dois, a impedir qualquer encosto mais ousado do ti Jaquim.

O miúdo estava a servir de escudo, a fim de manter as aparências, enquanto a camioneta fazia a travessia do bairro, por causa das vizinhas fofoqueiras e kuribotas das vidas alheias, como se fosse sacerdócio e profissão com diploma. O miúdo seria depois arremessado para a "kipula" junto dos outros, quando o tio Joaquim fez uma paragem estratégica e simulou ver a pressão de ar num pneu traseiro.

Finalmente a sós. A sobrinha já ia bem assanhadinha, bamboleando no pula-pula ao ritmo dos saltos da carrinha nos buracos e o ti Jaquim, não se fazia rogado na escolha dos buracos mais fundos na estrada para meter lá a roda do carro. Aos saltinhos, ali mesmo, ela ganharia honras e promessas de que seria a única princesa a fazer pula-pula naquela cabine, isso valeria enquanto o poder de Deus reinasse no Universo.

A promessa foi feita na continuação da viagem para Kifangondo. Mas não era só o olhar guloso do lobo-mau a denunciar as suas pecaminosas intenções. A mão direita, matreira como uma serpente faminta, deslizava sinuosa da alavanca de velocidades até tocar as coxas luzidias da princesa da cabine da "Bedford". Enquanto isso, na carroçaria da velha camioneta, alheia às conexões lúdicas que se desenrolavam no cálido interior, a garotada cantava alegremente. No meio deles, um miúdo de nome Isaac também gritava:
- "Vamo no rio, vamo no rio!".

Finalmente, o chilreio dos garotos encheu o rio. As mais-velhas que lavavam roupa nas margens muxoxaram descontentes com a impertinente chegada da caravana:
- "Xê, tunda daqui! Vocês estão a sujar a água, mazé!".
A rapaziada não lhes ligou patavina, tal como ninguém deu conta do deslize furtivo da "Bedford" para um matagal do Kikuchi, com uma primeira bem engrenada na coxa de velocidades da princesa da cabine. A engenhosa armadilha do "lobo-mau" estava a funcionar na perfeição e aprisionara as virtudes sonhadoras da sobrinha de olhos negros amendoados. E foi mesmo na cabine da "Bedford" onde selaram a fogosa relação.

Passados cinco meses, o assunto redundaria num inesperado escândalo que sacudiu todo o bairro. Uma prima mais-velha da princesa lhe descobriria a barriga pejada, habilmente embarrada como uma trouxa

Entretanto, nas águas do rio Bengo, a festa continuava, apesar do "muxoxo" em kimbundo das mais-velhas lavadeiras. Com o garrafão na mão, o pequeno Isaac afastava-se inadvertidamente dos companheiros. Era a maldição do rio a chamar-lhe desde as profundezas medonhas, onde se acoitam os espíritos escondidos que não gostam dos intrusos. O Isaac era muito criança para saber certas coisas e não entendia o perigo que o atraia. Ele deslizava veloz, desafiava a água que corria, corria, para os lados do mar, sem pedir licença à "EPAL". De repente alguém gritou:
- "Aiué, o miúdo está a ir com a água, sukuama!"-
Tarde demais! Num derradeiro adeus, alguns ainda viram à superfície da água uns dedinhos ternos, que logo foram tragados pela vingança diabólica das águas profanadas do rio Bengo. Estava arrancada do jardim da vida, a pétala de uma flor purificada com o perfume da infância. O rio levou o pequeno Isaac numa tarde de Maio. Nove meses depois, a cegonha de "Nzambi" trouxe de presente um mona bebucho para a princesa de olhos marotos amendoados.
*Advogado e jornalista