Os dados existentes dizem que das largas centenas de milhões de doses de vacinas já adquiridas por antecipação, mais de 80% estão destinadas aos países ricos e apenas 14% têm como destino os países mais pobres, quase exclusivamente asiáticos e da América Latina, sendo que África está quase totalmente fora deste mapa de distribuição antecipada das vacinas.

Isto, apesar de já há alguns meses a União Africana ter anunciado a criação de uma plataforma online para agregar as encomendas dos diferentes países de forma a que as aquisições em quantidade permitam ganhos de competitividade no momento em que o mundo inteiro estiver a competir pelas vacinas existentes no mercado.

Isto, porque se se repetir o que sucedeu no início da pandemia, quando alguns países como os EUA chegaram a ser acusados de desviar, ou mesmo "roubar" encomendas de ventiladores e equipamento de protecção que estavam destinados a outros países de forma a contornar a escassez deste tipo de material no mercado, como se estima que venha a suceder com a vacina.

Por exemplo, o continente africano, mas também a maior parte dos países asiáticos ou ainda da América Latina, dificilmente vão conseguir condições em quantidade e qualidade para garantir uma distribuição generalizada de vacinas que, para serem armazenadas em segurança, exigem temperaturas de 20 a 70 graus negativos, linhas de frio contínuas e sem quebras de energia para garantir a sua eficácia, como camiões frigoríficos com especificidades que em muito ultrapassam os normais para transporte de medicamentos comuns.

Se este cenário se vier a verificar, a par da evidente incapacidade de resposta à gigantesca e complexa operação de logística que permita levar a vacina a todos os cantos do mundo, seguramente que os países mais pobres e menos influentes correm o risco de ficar para trás.

Isto, porque, depois de resolvido o problema nos países ricos - onde está a capacidade científica de criar soluções -, a Covid-19, no pior cenário, transformar-se-á, com o passar do tempo, numa doença endémica nalguns cantos do globo mais empobrecidos e sem capacidade de resposta. Patologias como a malária, a febre amarela, a poliomielite ou o dengue são disso bons exemplos, que, estando praticamente erradicados nos países ricos, resistem e matam aos milhões nos países pobres.

Uma janela de oportunidade

Mas existe no horizonte uma possibilidade de se evitar este cenário catastrófico para os países mais pobres.

A farmacêutica britânica AstraZeneca e a Universidade de Oxford acabam de anunciar uma vacina que não precisa de condições muito exigentes de conservação - os frigoríficos comuns usados para lidar com medicamentos são suficientes - e a um preço razoável, prometendo mesmo que esta será vendida em todo o mundo ao preço de custo, o que poderá ser inferior a 3 dólares norte-americanos.

Os responsáveis pela produção desta vacina, que foi testada em humanos na África do Sul e no Brasil, para além do Reino Unido, chamam-lhe "uma vacina para o mundo" e anunciaram que a eficácia que apresenta é de 70%, bastante inferior às outras já conhecidas, como a da Moderna (EUA) ou da Pfizer (EUA/Alemanha) ou ainda da vacina russa, depois de também de Moscovo ter chegado a informação de que a Sputnik V, a vacina produzida pelo Centro Gamaleya, apresenta uma taxa de eficácia de 95% e tem características que lhe permitem igualmente o armazenamento e transporte em condições de exigência mínima.

Mas a vacina da AstraZeneca/Oxford, para além da vantagem das especificidades técnicas para a sua conservação e o preço largamente inferior, tem a possibilidade de facilmente chegar a uma eficácia superior a 90%, tal como as restantes, desde que a sua toma seja de uma dose e meia com um intervalo de cerca de um mês, o que, face ao preço de venda, é bastante mais prometedora que as concorrentes.

O que distingue a vacina desta farmacêutica e a das concorrentes é que foi produzida a partir da modificação de um vírus de uma constipação comum dos chimpanzés para "levar a informação à células humanas para lutar contra esta infecção", enquanto as da Pfizer e da Moderna foram elaboradas com uma nova técnica denominada "Mensageiro RNA".

O RNA (ácido ribonucleico) é um ácido nucleico que se relaciona com a síntese de proteínas e que existe em três variantes: o mensageiro, o transportador e o ribossómico e apresenta informações com as quais é possível coordenar a produção de proteínas, podendo, dessa forma, através da sua manipulação, levar informações vitais para que o sistema imunitário humano posssa combater o novo coronavírus com eficácia.

A vantagem da vacina da AstraZeneca/Oxfordé simples: sendo mais fácil de armazenar, mais barata e, ao que tudo indica, de mais fácil produção, esta "vacina para o mudo" pode bater toda a concorrência quando se tratar, como pretendem algumas agências das Nações Unidas, de garantir que este antidoto para a mais grave pandemia a que o mundo assistiu em muitas décadas tiver de chegar a todos os cantos do planeta.

E a AstraZeneca/Oxford parecem estar muito a sério neste capitulo de garantir que ninguém fica para trás, ao garantir que até ao final do ano vai ter mais de 200 milhões de doses disponíveis e até ao final de Abril de 2021 este número subirá para mais de 700 milhões, o que permite antecipar que até ao fim de 2021, mais de 1,5 mil milhões estarão já produzidas.

As estimativas mais exigentes apontam para a necessidade de pelo menos 70% da população em cada país estar vacinada para garantir a imunidade de grupo, o que, em África, quer dizer que, para obter esse efeito, tendo em conta que são cerca de 1,2 mil milhões os habitantes do continente, cerca de 720 milhões de pessoas sejam inoculadas com as duas doses da vacina da AstraZeneca/Oxford.

Andrew Pollard, o director do Departamento de Vacinas da Universidade de Oxford, face a esta capacidade de distribuição e produção a preços baixos da sua vacina, disse aos jornalistas que isso demonstra que se trata de facto de "uma vacina para o mundo", o que corresponde ao que tem sido o apelo do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que, desde que a Covid-19 evoluiu de epidemia para pandemia, apela a que as vacinas futuras sejam "para o mundo" e não para ganhar dinheiro por parte das farmacêuticas.

O único problema que esta droga está a enfrentar é que a sua eficácia, para chegar ao nível das rivais, exige duas tomas somando dose e meia, mas essa aparente desvantagem pode ser rapidamente suprimida pelo facto de ser menos exigente nas condições de armazenamento, transporte e inoculação, bem como pelo preço, que será, seguramente, inferior às demais, sendo disso o melhor exemplo o facto de poder ser levada em simples caixas frigoríficas para ser administrada em locais menos acessíveis de África.

Outra das vantagens apontadas pela AstraZeneca, como avança a Reuters, citando o seu director-executivo, Pascal Soriot, é que sendo a sequência das tomas para garantir maior eficácia 1/2 inicialmente e uma dose inteira 4 semanas depois, isso pode ter um impacto importante na logística exigida para a sua distribuição global, sendo menos quantidades inicialmente, com um mês para fazer chegar a restante dose.

Esforço global que não é visto desde a II Guerra Mundial

Ao que tudo indica, já a partir de Dezembro, vários países, como os EUA, o Reino Unido e a Alemanha, ou ainda a Espanha, vão iniciar a vacinação das suas populações mais expostas, como os idosos e o pessoal médico e das forças de segurança, passando depois, já em Janeiro, à restante população.

Em África, estes timings tendem a ser mais demorados e estima-se que só após os primeiros meses de 2021 as campanhas de vacinação generalizadas poderão ter início, embora os países, per si, possam, como alguns já anunciaram, avançar com a vacinação do pessoal de saúde, forças de segurança...

Para além das vantagens que este início das campanhas de vacinação vão representar para as economias, especialmente as mais dependentes da exportação de matérias-primas, como o petróleo, estão igualmente na linha da frente dos benefícios a retoma da normalidade e o fim progressivo dos severos confinamentos que foram aplicados em muitos países para procurar estancar a progressão da infecção.

Por exemplo, o Bangladesh - as Filipinas vão pelo mesmo caminho - foi um dos primeiros países do mundo menos desenvolvido a apostar nesta vacina da AstraZeneca/Oxford, sublinhando o seu ministro da Saúde, Zahid Maleque, que foram compradas por antecipação 30 milhões de doses devido à possibilidade de armazenamento a temperaturas entre os 2 e os 8 graus, o que permite ao país ter capacidade de resposta para o seu armazenamento.

Isso mesmo sublinhou o cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, que, citado pelas agências, disse estar ansioso por verificar osa dados globais sobre a eficácia e a segurança desta vacina, como das restantes, de forma a encorajar a que seja "facilitada a sua distribuição porque se trata de uma vasta operação que tem de atingir milhões e milhões de pessoas".

UNICEF está a organizar maior operação logística do mundo

O UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) está a posicionar-se como o maior comprador de vacinas do mundo de forma a poder levar a solução para a infecção por Covid-19 a 92 países, onde estão, incluindo Angola, aqueles com maiores dificuldades para adquirir as vacinas disponíveis no mercado e com as mais deficientes redes de logística.

Este esforço do UNICEF envolve a aquisição de mais de 2 mil milhões de vacinas, o que envolve, segundo avançou a directora do departamento de distribuição de bens, Etleva Kadilli, ao site UN News, perto de 350 parceiros em todo o planeta, incluindo companhias de aviação, de transportes marítimos e terrestres e empresas de logística.

Este esforço está a ser feito para que as vacinas possam começar a ser distribuídas logo que estejam disponíveis no mercado, adiantado Kadilli que só vai ser possível levar este plano em frente com sucesso se os parceiros estiverem igualmente empenhados.

Trata-se nem mais nem menos do maior esforço logístico de sempre realizado pela UNICEF desde que esta agência da ONU foi criada em Dezembro de 1946, com sede em Nova Iorque, EUA, apontando esta responsável como fundamental garantir que as vacinas chegam aos locais definidos no plano "imediatamente após estarem disponíveis e da forma mais segura possível".

"É uma operação gigantesca e histórica que exige sólidas garantias de transportes no terreno", disse Etleva Kadilli, referindo-se ao facto de estar em causa o transporte de muitos milhares de toneladas de material, desde logo as vacinas com as condições técnicas exigentes, como as baixas temperaturas no seu armazenamento, as seringas, o equipamento de protecção pessoal que está na linha da frente desta operação planetária que tem como um dos principais parceiros a IATA, a Associação Internacional de Transportes Aéreos.

Os 92 países que estão no mapa desta gigantesca operação logística, quase todos de baixo e médio rendimento, vão estar no caminho da maior e mais rápida operação logística de sempre liderada pelo UNICEF, embora o "Fundo" conte com uma larga experiência nesta área visto que anualmente já distribui milhões de vacinas em mais de 100 países do mundo.

Para garantir o sucesso desta empreitada, ainda segundo o site UN News, o UNICEF e a Organização Mundial de Saúde (OMS) estão já no terreno a mapear as linhas de distribuição existentes, anto privadas como públicas, de forma a serem introduzidas neste esforço, contando, para isso com o apoio dos Governos, especialmente no aproveitamento dos pré-existentes equipamentos de armazenamento a frio.

Uma ajuda excepcional para este esforço é o investimento já feito, especialmente em África, desde 2017, com a instalação de mais de 40 mil cadeias de frio incluindo equipamento desta natureza a funcionar a energia solar, ao mesmo tempo que a energia solar está a ser utlizada para a montagem de equipamento agora onde ainda não existe.

As vacinas de distribuição prioritária nesta operação são aquelas que foram ou estão a ser produzidas por empresas agregadas à COVAX, um mecanismo internacional que integra a Aliança de Vacinas (GAVI) e a OMS.