O Novo Jornal falou com vários moradores, alguns que há mais de 50 anos ergueram as casas e construíram famílias nos terrenos que as autoridades querem desocupados para que o novo aeroporto consiga a certificação por parte da Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO).

Nas ruínas que os bulldozers e cilindros deixaram para trás, o Novo Jornal encontrou centenas de pessoas que regressaram ao bairro assim que os militares e os efectivos da Polícia Nacional (PN). Depois do som das máquinas e dos gritos dos militares que os camponeses dizem ter ouvido, ficou o silêncio das autoridades governamentais e a incerteza sobre o que o destino lhes reserva.

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O dedo dos camponeses, oriundos, na sua maioria, de Catete e Malanje, que ali foram desembocando desde o tempo dos conflitos armados em Angola, é apontado ao Presidente da República, João Lourenço, que acusam de "deixar idosos e crianças ao relento e sem futuro".

Nem o pequeno cemitério foi poupado. Sepulturas vandalizadas estão agora mescladas com os escombros das habitações destruídas.

Ngola Kissanga, filho da chefe da Organização da Mulher Angolana (OMA) daquela localidade, a idosa Maria Francisco, de 83 anos, também camponesa, residente na zona há mais de 50 anos, disse ao Novo Jornal que nunca foram notificados pelas autoridades, mesmo quando começaram as obras do novo Aeroporto Internacional de Luanda.

"Quando esse aeroporto começou a ser erguido nós já residíamos nesta zona. Nasci e cresci nesta zona, hoje tenho netos, também nasceram e estão a crescer neste bairro, o que fizeram com a minha mãe e com outros moradores é uma barbaridade, não sabemos aonde recorrer nem como começar esse processo porque não percebemos o que está por detrás disto", afirmou, sublinhando que todos os moradores que residem no bairro agora demolido, sobrevivem da comida do campo.

"As autoridades até ao momento não dizem nada. Por isso, queremos que o PR diga alguma coisa para resolver o nosso problema", exprimiu o engenheiro agrónomo, Orlando Diego, que viu a habitação da sua avó a ser demolida.

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"Acabei de tomar agora um comprimido para a tensão, sou hipertensa, vivo aqui há mais de 30 anos, todos os meus seis filhos já morreram, resido sozinha, estou solitária, não tenho família, a minha casa foi destruída por militares armados, não tenho por onde ir e nem sei onde ficar", lamentou ao NJ a camponesa Maria Gamboa, de 60 anos, que acusa o Presidente da República de ser o responsável pelo sofrimento das mais de 500 famílias que agora vivem ao relento.

"Máquinas para destruir casas dos pobres, ele, o camarada João Lourenço, tem. Arroz e feijão para dar à população nunca tem", desabafou a idosa, juntando-se ao coro dos camponeses que estão a acusar o Presidente da República de ser o maior responsável pelo cenário vivido naquela zona desde a semana passada.

Fernanda José, de 50 anos, mãe de dez filhas, e esposa de um homem com deficiência visual, que perdeu a visão durante o conflito armado em Angola, contou ao Novo Jornal que é pai e mãe das filhas devido o estado de saúde do marido. Com a situação da habitação demolida e com a lavra apreendida pelo Governo Provincial de Luanda (GPL), a mulher salientou que não sabe como recomeçar a vida, porque o sustento da sua família provém da lavra.

"Estou a viver aqui desde 1990, o meu marido é cego, sou mãe de 10 meninas, não sei o que fazer para manter a minha família. Estamos na rua desde quarta-feira passada, ontem choveu e ficámos debaixo de chuva", descreveu a mulher.

O Novo Jornal contactou o director do gabinete de comunicação institucional e imprensa do Governo Provincial de Luanda, Ernesto Gouveia, que fez chegar à redacção um comunicado em que se lê que "o Governo Provincial de Luanda tomou conhecimento da existência de construções e intenção de construções na Reserva Fundiária do Estado adstrita ao novo Aeroporto Internacional de Luanda, constituída pelo Decreto n.º 12/06 de 15 de Maio, ampliada pelo Decreto Presidencial n.º 74/19 de 11 de Março".

No documento é acrescentado que "o projecto do Novo Aeroporto Internacional de Luanda é classificado como um dos objectivos de interesse estratégico do Estado, tendo sido aprovada esta reserva para a sua implementação" e que "a ocupação e construção dentro do perímetro da Reserva Fundiária do Novo Aeroporto Internacional de Luanda é ilegal e condiciona a certificação, operacionalização ou expansão do Novo Aeroporto Internacional de Luanda, inibindo a sua abertura e normal funcionamento".

O GPL garante que "as Administrações Municipais de Viana e Icolo e Bengo têm vindo a notificar sobre as transgressões e ocupações da Reserva Aeroportuária, sem o acatamento dos munícipes".

No comunicado, o GPL declara ainda ainda que "a operação e execução de projectos urbanísticos deve obedecer a Constituição da República, a Lei de Terras nº 09/04 de Novembro de 2004 e seu Regulamento Geral de Concessão de Terrenos".

O recurso à demolição de habitações em terrenos localizados na periferia do novo Aeroporto Internacional é recorrente. Algum histórico pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página, nomeadamente o incidente que levou à morte do jovem Rufino, em Agosto de 2016, no Zango II.